Pouco antes
do Natal conclui a leitura do livro de Luciano Trigo, Guerra de Narrativas;
naquele momento tinha a ingênua e falsa sensação de a guerra estar encerrada
após as terríveis batalhas travadas entre agosto e finais de outubro no Brasil.
Ledo engano: tratava-se apenas de uma trégua no front, a disputa das últimas 48
horas sobre a cor das roupas de meninos e meninas é a mais nova batalha na
reacendida guerra de narrativas. Em entrevista ontem à noite, a ministra da
família, cujo jargão desencadeou todo o debate na imprensa e redes sociais, argumentou
que seu jargão era “apenas uma metáfora”, o que Michele Prado no Livro de Rostos
devidamente já demonstrou ser, digamos assim, inconsistente. O que chama a atenção
é o fato de a ministra realizar uma defesa do que disse através de um argumento
da forma do discurso: sim, ela admite que está inserida e desencadeou a mais
recente batalha de dentro da Guerra das Narrativas.
O livro de
Luciano Trigo trata, portanto, de um fenômeno ainda em curso e continua sendo
um precioso manual de compreensão do debate político contemporâneo no Brasil.
Ele deve ser lido como um relato do front, que, em se tratando de uma guerra de
narrativas, e não uma guerra fatual, assume por sua condição textual inevitavelmente
um dos lados em guerra. A partir de sua atuação nas redes sociais e na imprensa,
os dois lugares principais das frentes de batalha contemporâneas, Luciano Trigo
consegue descrever muito bem os mecanismos através dos quais se forjou o
controle do imaginário da população por parte das esquerdas, com destaque especial
para a estrutura do livro, que progressivamente vai de um relato impressionista
do front até chegar à análise dos mecanismos de dominação identificados pela
teoria marxista e aplicados, para usar um termo recorrente no livro, apenas com
sinal contrário. Aquilo que marxistas provavelmente denominariam de alienação é
dissecado com a capacidade de quem, atuando no front da guerra, compreende
muito bem ser uma ilusão a possibilidade de sua reversão, pois efetivamente é uma modalidade de relação cuja
capacidade de operar no modo guerra depende essencialmente da eficiência de sua
autonomia. O outro ponto alto do livro é ser capaz de sintetizar o calor, forma
e conteúdo do debate nas redes sociais: efêmero, volátil e excessivamente relacionado
ao ambiente momentâneo, o debate nas redes, tão virulento como formador de opinião
na contemporaneidade, corre o risco sempre de ficar sem registro. Sob este
aspecto, Guerra das Narrativas é um bom exemplo desta que deve ser uma nova categoria
de literatura, a que pretende guardar para uma compreensão exterior ou
posterior ao campo da disputa aspectos importantes de embates dificilmente reconstituíveis
por futuros arqueólogos.
Como parte
da vasta bibliografia que tenta explicar os fenômenos ao redor de junho de
2013, Guerra das Narrativas contribui com o desenho do quadro dos debates de
ideias tendo como pano de fundo a reconstrução histórica de alguns acontecimentos,
afinal ainda que a irreversibilidade da autonomia do discurso seja um fato, é através
do seu questionamento que é possível desfazer o modo de guerra. Aqui creio que a
incorporação de alguns antecedentes ao junho de 2013, como as greves no serviço
público do ano de 2012, que, iniciadas nas universidades, desafiaram a submissão
dos sindicatos ao governo, contribuiria para um lastro histórico mais sólido.
Por outro lado, o capítulo que trata do debate da ideologia de gênero e produção
artística ganharia em vigor, no meu entender, se o argumento pudesse ser
enriquecido com a questão dos menores infratores e a extensão da proteção defendida
pelo campo autodenominado “progressista”, como uma forma de contradição inerente
ao tratamento dado à infância. Pessoalmente, diante dos números de prostituição
infantil no Brasil, não creio que “os brasileiros não aceitem que se mexam com
crianças”; o que brasileiro não aceita mesmo é que se tematize abertamente o
assunto.
Enfim, todo
o debate desde a nomeação da ministra da família, que retoma o tema da infância
e sexualidade com muito vigor, mostra que a Guerra de Narrativas continua. E
agora parece que o outro lado tomou gosto pelo que pode conseguir se esta
guerra for mantida, ainda que seja o que de menos o país precise.