terça-feira, 22 de julho de 2008

na cidade do automóvel

Stuttgart

Fomos a Stuttgart para o aniversário de Kathrin; ela estava com um vestido lindo e fez um jantar ótimo. As crianças cresceram, como é de se esperar.

Em Stuttgart há sabores de sorvete muito estranhos: sorvete de canela na sorveteria, e no restaurante, acompanhando um creme caramelizado como sobremesa, sorvete de vinagre balsâmico. Eu, que não conhecia, não deixei de experimentar; gostei, mas creio que em outra combinação, que não seja assim com algo muito doce, deve ser muito difícil.

O centro da cidade é um misto de reconstrução de edifícios históricos com a espacialidade de um campus universitário, um tanto ilhado por autopistas urbanas, costurado por caminhos para pedestres que atravessam shoppings e mercados antigos. A arquitetura de tijolo escuro e pedra talhada com motivos secessionistas não deixou de ser uma surpresa, na cidade de muitas ladeiras e árvores e grandes panoramas.

O Weissenhofsiedlung guarda uma emoção histórica de registro de pioneirismo, a arquitetura do Momo de outras ocasiões imediatamente posteriores é sem dúvida mais refinada, mas não seria diferente. A casa da esquina de Le Corbusier restaurada e transformada em museu vale uma viagem até lá, e estar diante das unidades desenhadas por Mart Stam vale um retorno.

Minha grande expectativa porém era em relação ao Museu da Mercedes Benz, do UN Studio. Não me perguntem nada dos carros e caminhões, só vi o espaço, e que espaço! Sei que tem gente que acha que Eisenman não dá conta das dobras de Deleuze (eu acho que a obra dele vai além) mas alegar que o trabalho do UN Studio não ultrapassa estas duas instâcias é má vontade ou ideologia. O museu poderia ter menos objetos expostos e em alguns momentos – nas salas com caminhões – o pé-direito poderia ser mais alto, mas nada que comprometa a fruição de um espaço que é puro contínuo, desorientação programada e fluidez. Vistas deslumbrantes sem peitoril algum, elevadores futuristas e acabamento perfeito. É inevitável não pensar no Guggenheim de Wright (a arquitetura do museu não deixa de ser um exercício de atualização da idéia), e começar a esquecer de ter visto a Staatsgalerie de Stirling, também ali em Stuttgart, com suas referências arquitetônicas hierarquizadas. Acho que deste prédio, ou melhor, do corrimão tão exagerado quanto feio de sua área externa, pode ter vindo a "inspiração" para os horrorosos tubos de aço das escadas do Shopping Salvador.


Mais fotos no álbum do flickr
http://www.flickr.com/photos/mcorreiacampos/


quarta-feira, 16 de julho de 2008

notícia velha

Finalmente ontem, com a sensação de ser o último dos brasileiros a fazê-lo, assisti a Tropa de Elite. Fiquei impressionado de como um filme pôde ganhar o maior prêmio em um dos festivais mais importantes do mundo com uma estética, digamos assim, tão rasa. Em termos de montagem, condução de câmera, fotografia e narrativa, era inevitável lembrar de séries de TV como The Office ou a sua equivalente alemã Stromberg, satíricas e estranhamente hilárias, exatamente por fazer humor através do "estilo documentário" com situações nas quais o ambiente do capital privado comporta-se exatamente como aqueles estatais, perdidos na burocracia em função da própria escala.

Talvez seja esta escolha por um "estilo de documentário" tão ortodoxo quanto desgastado que torne tão evidentes a fraqueza de outros detalhes: por mais que estudantes de direito não se destaquem normalmente por suas opções de gosto estético, creio que Shiny happy people do REM e Polícia dos Titãs seriam dois números mais que improváveis em qualquer festa em 1997. E a obviedade kitsch de o grupo da faculdade do policial Mathias ter que discutir Vigiar e Punir de Foucault é brochante. Na construção dos personagens falta profundidade, o espectador acaba indiferente frente à morte de uma das três figuras centrais, cena envolta de uma expectativa tão usual como desgastada. Também não se consegue entender porque precisam ser repetidas tanto a cena de abertura, esta quase que inteiramente no meio do filme, como a cena de tortura, esvaziada completamente de impacto na terceira vez em que surge na tela. Poderíamos ter visto ao menos o depósito dos eficientes sacos plásticos da polícia.

Mas tudo isso pode ser contraposto com aquela velha argumentação de que este é um filme de conteúdo (deve ter sido este o argumento em Berlim), mas a única mensagem mais ou menos esclarecedora do filme é a que indica a responsabilidade dos consumidores de drogas de classe média e suas contradições no jogo social do país. E aqui mais uma vez a repetição sem sutileza e aprofundamento acaba por deixar a sensação de que em quinze minutos, no máximo, o mesmo conteúdo poderia ser transmitido. Neste ponto, ele se alinha com uma certa tradição acadêmica, que não por acaso tem em Foucault uma das suas referências mais fortes, de tentar apresentar uma idéia através de espirais explicativas que em vez de enriquecê-la acaba por levar à desconfiança da sua validade. O ponto forte do filme é sem dúvida a atuação dos atores, em especial Wagner Moura e Fábio Lago. Que Tropa não tenha sido indicado para concorrer ao Oscar, mesmo sem ter visto O ano em que meus pais saíram de férias, parece-me uma decisão acertada, frente a um certa qualidade de acabamento das produções nacionais que chegaram a participar da cerimônia.

Fico apenas com a dúvida sobre a eficiência do modo como o filme toca na nossa – brasileira – evidente, insaciável e histórica necessidade de ordem. É claro que esta dúvida, que não chega porém a se tornar um incômodo, é uma conseqüência vital de uma certa ambigüidade que o filme acertadamente explora. Mas sem ir a fundo, ou se contentando com a "argumentação sistemática" foucaultiana - o filme fica ali no nível mesmo daquele debate em sala de aula que é mostrado -, ele provavelmente torna-se mais ineficiente do que o aparente engajamento tente evidenciar, algo comum a tudo que toma este corpo teórico como referência e a tudo o que em geral se pretenda tão engajado. Os supostos vídeos rodados por crianças e adolescentes exibidos na internet que tentam reproduzir as cenas dos sacos plásticos são a resposta lógica e pertinente a tal empreitada.

sábado, 12 de julho de 2008

de uma canção

"Sometimes it feels like the world is falling asleep
How do you wake someone up from inside a dream?
(...)
A product to advertise
A market to monopolize
(...)
Enemies to neutralize
No time to apologize
Shot them to tranquilize
Weapons to synchronize
Cities to vaporize"

The Strokes, the ize of the world, do álbum First Impressions of the Earth

De alguma maneira é como se eles estivessem falando do programa de ação atualmente em uso para a cidade de Salvador

quinta-feira, 10 de julho de 2008

Salvador cidade perdida

Até parece que finalmente a cidade da Bahia chegou lá no nível do Rio, cidade/estado contra a qual, mesmo que veladamente, Salvador sempre tentou se medir: um governo ligado aos interesses de grupos religiosos não-tradicionais coincide com a era das chacinas de jovens moradores de bairros de pobres. Mussurunga é a nova Cidade de Deus.

A grande medida do que Salvador é hoje foi dada recentemente por um leitor de A Tarde que, no meio do debate sobre a retirada das pedras portuguesas do Porto da Barra, sugeria como modelo a nova orla de Aracaju. Nunca fui à capital de Sergipe, não tenho como avaliar esta referência, mas pertenço a uma geração que ainda conheceu a piada boba que dizia que o equivalente do Bahiano de Tênis em Aracaju era o Sergipano de Conga. Não sei se ainda existe a Conga para ser comprada, mas o Bahaino de Tênis virou uma padaria horrorosa. Quando o Rio de Janeiro deixou de ser referência, Salvador parecia querer olhar para Miami via Barra da Tijuca, mas hoje a referência possível parece ser mesmo Aracaju. Ou seria Belford Roxo?

O ferrorama inacabado faz par com um dos piores índices de ensino público do país, este condição para aquele. As barracas da orla que mimetizam o que seria uma favela linear, a área do antigo aeroclube, os passeios de 1,20m de largura na área da Av. Tancredo Neves, o anseio por demolir a Fonte Nova, a espera indefinida por um telhado das baianas de Amaralina, um subúrbio de imagens menos atrativas do que aquelas exibidas na TV quando de algum ataque terrotista em Bagdá, o fim do calçamento de pedras portuguesas no Porto da Barra. Tudo pode parecer um luxo frente às chacinas, mas não é. É programático.

Hoje fui informado que as árvores da Barra, não só as pedras portuguesas, estão sendo sacrificadas em nome do novo calçamento. Poderiam aproveitar e exterminar os meninos de rua do bairro, e reinstalar as passarelas para caminhantes em salto alto no Pelourinho, seria um pacote de medidas de sentido reconhecível, possível de ser bastante ampliado. Para a Barra, poderiam instalar ainda elevadores para a faixa de praia, esta poderia vir a ser azulejada, junto com a faixa de alvenaria da base dos fortes, e dessalinizadores de ar poderiam proteger os automóveis de quem por ali passa. Tudo leva a crer que o futuro da Barra está esboçado no Largo Dois de Julho.

No Rio de Janeiro não há nem nunca houve barracas de praia, nem ninguém pensaria em destruir o calçadão em pedras portuguesas de Copacabana, nem as famosas ondas, nem o trabalho de Burle Marx. E o Metrô vai do subúrbio a Copacabana.

Copacabana

E há dez anos atrás, quando Lisboa criou um bairro para a Expo, não deve ter havido dúvidas quanto ao material a ser usado para as grandes e generosas áreas destinadas aos pedestres: pedras portuguesas. Elas estão lá, em ótimo estado, sem oferecer barreiras a qualquer tipo de usuário. Como em toda a cidade.

Lisboa

Mas estas são referências muito distantes, já há muito voluntariamente perdidas. As atuais de Salvador parecem se limitar ao que há de ruim em outras cidades, seja Rio de Janeiro ou Feira de Santana. Entramos no novo tempo, aquele onde favela é solução urbanística e o cinismo e a indiferença apenas vão contabilizando o número de mortos em estatísticas, permitidas ou não.

Logo não haverá árvores em Salvador, algo que acontecerá mesmo antes do grande dilúvio redentor, aquele causado pela calota polar derretida e que afogará os arranha-céus da orla que já começaram a aparecer. Há esperança.