Por ocasião da aprovação na Câmara dos Deputados há poucas semanas da primeira lei brasileira desde 1888 que faz diferença entre cidadãos brasileiros em virtude de sua cor de pele.
1. Pessoal
Eu tinha cinco anos e minha irmã três quando nos tornamos órfãos de pai. Casada havia seis anos, a vida de minha mãe se tornou um pesadelo. Pudemos continuar morando no apartamento confortável de Conjunto Habitacional onde já morávamos, e nós passamos a receber uma pensão alimentícia do Estado correspondente em teoria àquilo que meu pai havia contribuído para a sua aposentadoria. É claro que alguns anos mais tarde, a inflação havia reduzido esta pensão a um valor simbólico. Por mais que minha mãe trabalhasse, e não foi pouco o esforço dela, nós só conseguimos sobreviver com alguma decência à hiperinflação dos anos 80, porque meu pai havia comprado um terreno no Jardim Brasília, em Pernambués, e da venda deste terreno escapamos de, por exemplo, ter perdidas as chances de um futuro profissional com um horizonte mais amplo, pois sem isto, teríamos terminado numa escola pública.
Mas o Estado não queria que eu cursasse a universidade: no ano em que fui admitido em primeiro lugar no vestibular de toda a UFBA eu fazia também 18 anos. Com 18 anos eu perdia automaticamente a pensão alimentícia a que eu tinha direito. Ali o Estado enviava-me uma clara mensagem: você, que é órfão, não receberá nenhum apoio de minha parte em continuar a estudar; a partir de agora, se você quiser se alimentar, vá trabalhar. Como a universidade tampouco concedia qualquer prêmio ou apoio a quem teve as melhores notas entre todos que prestaram o vestibular naquela ano, era claro que se eu quisesse estudar eu teria que me virar.
Graças à minha capacidade intelectual, eu pude além de estudar, dar aulas de matemática e física à noite para estudantes de segundo grau, além, é claro, do estágio de arquitetura à tarde. Estudar mesmo para o curso só pude nos fins de semana. Concluí em seis anos e meio um curso que poderia ter feito em cinco, mas não me queixo. Agradeço à mãe de João, um menino que morava na Vitória, e que foi a primeira pessoa que me confiou a tarefa de ensinar física e matemática ao seu filho. E que me indicou a outras pessoas.
Creio que, à exceção das camadas sociais muito, muito ricas, órfãos tiveram, tem e terão uma dificuldade material muito maior do que qualquer outro que tenha pai e mãe vivos o apoiando em sua formação, seja ele afro-, índio-, europeu-descendente ou mesmo simplesmente brasileiro, seja ele pobre, classe média ou média-alta. Caso alguém tenha interesse realmente em dar apoio a alguém, dê uma olhada no que pode fazer por órfãos, e também pelos filhos de mãe solteira, estas crianças estão efetivamente em desvantagem, uma que caberia ao Estado realmente reparar.
2. Político
"Reconhecemos hoje na Espanha o direito de as pessoas contraírem matrimônio com outras do mesmo sexo. Antes de nós, fizeram-no Bélgica e Holanda, e anteontem o reconheceu o Canadá. Não fomos os primeiros, mas estou seguro que não seremos os últimos. Atrás virão outros muitos países, impulsionados, Senhoras e Senhores, por duas forças que não podem ser contidas, a liberdade e a igualdade."
José Luiz Zapatero, primeiro-ministro espanhol, por ocasião da aprovação da lei no Parlamento daquele país que passou a reconhecer a união civil entre pessoas do mesmo sexo.
José Luiz Zapatero, primeiro-ministro espanhol, por ocasião da aprovação da lei no Parlamento daquele país que passou a reconhecer a união civil entre pessoas do mesmo sexo.
O Estado Espanhol, diferente dos demais cordialmente citados por Zapatero, foi efetivamente o primeiro a acabar com diferenças de chances estabelecidas por lei entre seus cidadãos no que diz respeito à matéria em questão. Naquele momento Holanda e Bélgica ainda conservavam restrições a casais do mesmo sexo quanto à adoção de crianças. Em vez de criar instituições jurídicas e uma série infinita de adaptações a milhares de leis, a Espanha mudou uma única frase, redefinindo o casamento como um acordo que, em vez de ser firmado entre homem e mulher, passava a ser entre duas pessoas.
Os princípios de liberdade e igualdade são a base e a medida de leis verdadeiramente sociais. O Estado não deveria por lei estabelecer qualquer desigualdade entre os seus cidadãos. O que pode ser vendido como positivo, se estabelecido a partir de uma desigualdade, será sempre negativo para alguém, como é o caso das cotas raciais. O Estado deveria estar preocupado em cumprir seu dever constitucional de oferecer ensino de qualidade a todos, da creche, passando pela jardim de infância, escolas primárias e secundárias até a universidade. Caso os riquíssimos queiram se separar da grande massa, que a eles seja dada a liberdade de pagar muito, muito caro pelas escolas onde eles cultivem seu desejado isolamento social. Todo o resto da população, creio que uns 90 por cento, apoiaria poder contar com um ensino público de qualidade, em escolas localizadas na vizinhança.
Há que confiar na esperança contida no discurso de Zapatero, que as forças da liberdade e igualdade não podem ser contidas. Especialmente em épocas tão maquiavelicamente contrárias a estas forças.
PS: Esta e a minha avó materna, no seu aniversário de 94 anos na semana passada, para quem por acaso pense que eu não teria direito, caso hoje tivesse 18 anos, às cotas raciais e estaria apenas sendo um racista me queixando. Na verdade, não teria mesmo direito, porque sei que minha mãe teria feito o mesmo esforço para que nós não tivéssemos que estudar em uma escola pública de péssima qualidade, como ela ainda é hoje, principalmente em Salvador.