terça-feira, 14 de junho de 2011

SOY CHUECA: A luta por Chueca ou gentrification strikes again

Conheci Madrid ainda na primeira metade dos anos 90 e estive lá algumas vezes desde então, a mais recente em fevereiro deste ano. Sempre hospedado no coração de Chueca, na Plaza Vazquez de Mella.
Madrid mudou muito neste intervalo de tempo: da cidade forrada de cartazes de cinema pintados a mão (hoje inexistentes) e escadas rolantes de madeira que não funcionavam na saída das estaçoes de Metrô do centro à cidade do Terminal 4 de Barajas, de autoria de Rogers, do Caja Forum de H & dM, da "4 torres business area" e, principalmente, da sua enorme e marcante intervenção de redesenho das margens do rio Manzanares.
As transformaçoes recentes de Madrid incluem ainda a poderosa gentrificação do centro da cidade, em especial de Chueca, seguindo todos os passos que um processo como este prevê. Quem hoje vê a Calle de Hortaleza transformada em uma zona de pedestres arborizada, ladeada de lojas comuníssimas nos shopping centers do mundo mundial, ou a própria Plaza Vazquez de Mella com seu estacionamento subterrâneo e hotel boutique, é incapaz de imaginar o que era este bairro há pouco mais de quinze anos atrás, povoado de restaurantes tradicionais de centro de cidade e seus garçons mal humorados, lojas alternativas de designers locais, drogados nas calçadas e bares e cafés gays. Foram os gays que escolheram o bairro para morar e transformaram Chueca em um lugar hoje desejado por todos, que impulsionaram a renovação urbana que hoje é usada como argumento para a proibição dos shows da parada do orgulho gay no bairro.
No meio da massa de consumidores e turistas, os gays já são há muito tempo minoria no espaço público. O mesmo acontece na Müllerstrasse em Munique e nos seus equivalentes em outras cidades européias, com maior ou menor intensidade. Já imagino os que vão ver um lado positivo nesta tentativa de expulsão dos gays de Chueca, argumentando que gueto nunca foi bom para ninguém. Faz tempo que o espírito de Stonewall não se fazia tão necessário: no país que deu exemplo ao mundo ao garantir a igualdade plena de direitos aos seus cidadãos independentemente da sua orientação sexual, Chueca é solo sagrado, há que lutar por ele.

segunda-feira, 13 de junho de 2011

"me alivia a dor", zizi possi no tca

Breno tem toda a razão em reclamar da ausência de direção no show, eu brincando disse que o irmão da cantora talvez estivesse recheando seu currículo lattes. Faltou algum fio condutor, as pausas foram longas e o sorteio de dvd não precisava ter acontecido.
Eu continuo sem entender porque o público vai a um show para cantar, de preferência mais alto que o cantor: ainda mais em um show onde a cantora pediu duas vezes que a acompanhassem: isso somente pode significar que nos outros momentos todos deveriam ficar escutando. O grande problema de ontem foi aquele público, formado em sua esmagadora maioria por pessoas que se deram um presente do dia dos namorados, obedecendo à publicidade na TV: em outra data, o público teria sido muito distinto. Zizi não perdoou: disse que, para ela, aquela data era como se fosse o dia das crianças, adorei isso. Mas o resultado foi o que foi: essa grande maioria foi para ouvir Per Amore e pedir Perigo no bis. Aff.....
Mas Zizi permanece a cantora que é e sempre foi (e eu ainda acho que a percussão pesa demais nos arranjos) e foi uma sorte Caminhos de Sol ter sido a terceira canção do show, logo no início, quando o público ainda estava contido. O melhor momento do show foi Pra Dizer Adeus, perfeita, o segundo ponto alto, Tico Tico no Fubá. Zizi brilhou com seus vocalises, divisoes dos versos e afinação.
Asa Morena teve outro significado, cantada por alguém que visivelmente ainda sente muitas dores. Tomara que isso passe logo e que o próximo show da cantora na cidade não coincida com nenhuma "data comemorativa". Os fãs desejam as duas coisas intensamente!

quinta-feira, 9 de junho de 2011

referência musical, as vozes

Tenho vontade de escrever mais aqui sobre música, mas sempre que escrevo sobre música tenho a sensação de produzir um texto equivalente a escrever sobre fachada achando que se está escrevendo sobre arquitetura: digo isso porque não sei tocar instrumento algum e nem sei ler partitura. Sinto-me um analfabeto na matéria.
Ainda assim, persiste em drmukti já há algum tempo a vontade de tratar mais de música e conclui que um bom arranque seria falar sobre aquilo que me parece referência de absoluto, ou o que chega perto disso. Começo com as vozes.
São quatro nomes de duas sílabas, e isso não deve ser acaso: Ella, Dori, Zizi e Eddie.
Ella Fitzgerald é definitivamente absoluta: é uma sorte para o mundo ela ter vivido na época da reprodutibilidade técnica. Ella é em termos musicais para o século XX o que Schubert é para o XIX ou Mozart para o XVIII. Exagero? Não acho. Sorte na vida teve quem pôde ir a uma apresentação sua.
Dori Caymmi deveria ter gravado o dobro, o triplo de discos que ele gravou até agora, deveria ter feito dez vezes mais shows cantando. Às vezes chego a crer que ele segue a máxima que eu desde há muito tempo repito: "Se eu tivesse a voz de Dori Caymmi, eu não falava com ninguém!" Nunca estive em um show seu, super falta.
Zizi Possi protagonizou o primeiro show a que assisti, há muito tempo atrás no Teatro Castro Alves (ela era muito jovem, Johnny Alf ao piano e eu encantado para o resto da vida). Não conheço outra palavra para a sua voz que beleza: tão bela que serão para sempre perdoados (e adorados) um vocalise aqui e ali, um arranjo às vezes carregado demais nos baixos e Asa Morena. Voz suprema (sim, caminhos de sol na veia).
E Eddie Vedder. Já na primeira vez que o ouvi sei que esta é a voz masculina mais bonita desde que a palavra rock significa um gênero musical. Não é alcance, nem ritmo, nem interpretação, é o timbre, só dele. Ele pode tanto que até seu corte de cabelo mais comum não importa. Amei suas ukulele songs.
Domingo estarei lá no Castro Alves, já não vejo a hora. Duas sílabas duas vezes, perfeita.

Oslivro em Inscençatu Corassãu

Aconteceu no capítulo desta quarta-feira, em uma daquelas cenas onde o timbre muito agudo e o sotaque baiano de Lázaro Ramos fazem a interpretação dele do pegador carioca da zona sul muito pouco convincente. No meio de uma cena mais enérgica, é difícil dizer se o texto foi escrito desta maneira ou se foi um deslize do ator, mas ali, reclamando de ciúmes, a seguinte frase foi por ele pronunciada:
"Daqui a pouco meu filho vai estar convivendo mais com esse cara do que eu."
É necessário explicar: os ciúmes nao eram de um caso bizarro de pai e filho gays que estivessem paquerando o mesmo cara; o ciúme era do namorado da mãe do filho do personagem, que é um bebê, que estaria passando mais tempo com o atual namorado da mãe do que com o próprio pai. Só que, para isso, ele deveria ter dito "do que comigo" e não "do que eu". Eu é a forma da primeira pessoa do singular na função de sujeito, ou caso reto; portanto, o eu da frase eclipsada somente pode substituir o sujeito da oração que lhe precede, que é meu filho. Para expressar o que ele queria dizer, ele deveria ter usado "comigo", palavra que em português representa a contração entre a preposição com e o caso oblíquo do pronome da primeira pessoa do singular, me.
Um belo exemplo de que mesmo na língua falada as regras demonstram claramente porque elas existem. Sim, eu sei que a turma do "preconceito linguístico" mesmo assim vai querer ter razão. Só não vão conseguir se fazer entender. Ou vai ter que argumentar que naquela cena, o macho pegador se reveleva um bissexual em disputa com a mãe de seu filho pelo atual namorado dela. Mas a história não seguiu assim. Era uma frase simplesmente errada.

segunda-feira, 6 de junho de 2011

em sao paulo, duas exposicoes bem distintas

Aproveitei minha estadia em São Paulo e fui a duas exposicoes: Escher e Leonilson. Mais distintas não poderiam ter sido: Escher é um daqueles artistas que se vêem como instrumento para a arte, para quem a arte lhes é algo superior, Leonilson se via como arte.
Aprendi muito com a excelente exposição de Escher, suas referências no surrealismo, arte abstrata e azulejos do sul de espanha, seu exímio traço desde sempre e sua aproximacao à matemática. Espalhada pelos andares e salas não tão bem conectados do Centro Cultural do Banco do Brasil, e povoada de criancas e adolescentes barulhentos, ainda assim a exposição permitia ter uma excelente visão do conjunto da obra do artista, com destaque para os originais de estudos e as animacoes em vídeo contemporaneas a partir dos motivos de Escher. Altamente emocionante, ao menos para quem é fascinado pela tensão entre abstração e figuração, presentes na obra do artista como em poucas. Inevitável nao pensar no que ele teria feito no mundo da computação gráfica; ou imaginar que ela nao existiria sem ele.
A exposição da obra de Leonilson tinha uma arquitetura primorosa: três andares do Itaú Cultural forrados de compensado claro, incluindo o piso e os móveis, em uma tectônica de exata adequação à obra. Construída como uma autobiografia, a mostra vai revelando o misto de perversoes católicas, um pai dominador, cultura pop (the smiths presentes em duas obras, new wave em várias), cultura popular, parangolés e outras coisas de oiticica, que formam a base para uma obra que pretende ser ao mesmo tempo mínima e pessoal, abertamente devassa nos detalhes não mediados.
Autocomplacência substitui na obra de Leonilson o que a matemática é na obra de Escher. Leonilson é o artista engajado em si mesmo, moderninho antes da hora, purista em um conceitualismo naturalizante da arte. Tão naturalizante que em várias obras você pode procurar ali o artista sem encontrá-lo.
Nao consegui conciliar as duas visitas, talvez sejam mesmo assim irreconciliáveis. E tampouco consegui mantê-las objetivamente equidistantes. Escher me emocinou.