sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012

cordas, carnaval e música

Tenho lido nas últimas semanas, em especial a partir das questoes levantadas pelo movimento Desocupa Salvador / Praça de Ondina, uma série de cobranças e acusaçoes às "estrelas do axé music", de ontem e de hoje, sobre os über-camarotes e as cordas dos blocos de carnaval; a última destas cobranças, e talvez a mais forte, sintetizava uma certa indignação à entrevista de Bell Marques a um jornal local através de um gráfico que associa uma foto do cantor a uma forca, com o trocadilho A CORDA.
Sem em nenhum momento concordar com o ponto de vista destas "estrelas", compreendo-as perfeitamente,  da mesma maneira que não posso compreender a cobrança dirigidas a elas; mais ainda, por exemplo, não vejo diferença entre pagar um abadá para sair no Inter ou no Eva e arrecadar dinheiro entre pessoas privadas através das redes sociais para o financiamento do Microtrio (por mais que eu goste do Microtrio). Explico.
Sou da geração que viu escolas de samba na rua da ajuda, apaches com a bola de neve na praça municipal, macacão de posto de gasolina como roupa do bloco traz os montes, internacionais e corujas exculsivamente masculinos e vestidos de marinheiros, concurso de traveca às 15 horas da tarde nas escadas do palácio dos esportes, luis caldas e a banda acordes verdes em 1983 cantando a música do bloco beijo. E depois todo o que vem daí em diante (este aí significa o período de consolidação de um fenômeno gestado entre Moraes Moreira ter se tornado o primeiro cantor de trio e Luis Caldas ter clip no fantástico), embora mesmo esta história venha sendo muitas vezes distorcida em prol de leituras ideologicamente "racializadas".
O que fica claro a partir do sucesso com a fórmula da nova música de carnaval consolidada no início dos anos 80 é que ela se transformou em um produto pop - diferente de toda a outra música de carnaval do país, a exemplo dos frevos pernambucanos ou os sambas-enredos do Rio -, e que a corda do bloco no espaço de carnaval de rua em Salvador se tornou cada vez mais impermeável, sendo esta uma base fundamental para a ascensão da outra. Fiz uma exposiçao bastante detalhada deste "desenvolvimento" no artigo “De muquiranas, piratas e marinheiros a gays: o espaço dos homossexuais dentro do carnaval de Salvador nos últimos 25 anos”, que apresentei no SILACC 2010 – Simpósio Ibero Americano Cidade e Cultura: novas espacialidades e territorialidades urbanas.
Como cobrar assim das "estrelas do axé", que mais que cantores de carnaval de Salvador são astros do pop brasileiro, cuja construção da carreira está ontologicamente associada à corda do carnaval como construção de um espaço privilegiado dentro da festa que afirmou e construiu o sucesso comercial destas "estrelas" (e somente assim se explica que o Chiclete com Banana seja a banda mais popular, de sucesso mais prolongado e cujo abadá seja o mais caro de todos os blocos), que eles se posicionem contra a corda e o camarote, o aprimoramento final da separação, cuja especificidade espacial e sua exarcebação porém nao deixam de trazer a própria implosao do sistema, como o estamos vendo?
Em artigo publicado ontem, Messias Bandeira se dirige exatemente a quem se deve dirigir em toda esta polêmica: a quem paga blocos e camarotes. Eu me orgulho de, na condição de alguém que sempre gostou muito de carnaval e nunca suportou ouvir as músicas do carnaval um dia sequer fora do período da festa, ter descumprido minha regra de nunca ter pago para sair num bloco de carnaval uma úncia vez, com Os Mascarados. Mas creio que esta é uma culpa pequena.
O mecanismo da corda, que o camarote como seu extremo acaba por contraditoriamente ameaçá-lo, uma vez que ele ameaça o espaço fora da corda e não o de dentro da corda, não está pautado necessária- ou exclusivamente na discriminação social; ele foi um mecanismo de construção de um produto pop em uma sociedade - a baiana ou mesmo a soteropolitana - que nao possuía uma classe média robusta. Se querem o fim das cordas, reinventem o carnaval, tirando do foco da festa o seu produto pop básico, sua música, e por consequência, sua possibilidade de consumo. Com todas as suas consequências.

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