Hoje faz um mês que tive uma conversa de
mais de duas horas com os estudantes em sala de aula, informando-os sobre as
razões da greve que naquele momento se iniciava. De acordo com a decisão da
assembleia de professores ocorrida na tarde anterior, no dia 29 de maio – e à qual não pude
comparecer em virtude de a data ter sido mudada de última hora, fazendo com que
a assembleia acontecesse no mesmo horário em que recuperávamos três pré-bancas
de TFG que haviam sido remarcadas em função da greve dos rodoviários na semana
anterior –, a greve estava instalada por melhores salários, um novo plano de
carreira e melhores condições de trabalho.
Razões suficientes para a greve não precisariam
ser explicadas aos estudantes: as condições em que as aulas de atelier II
acontecem na sala 9 da Faculdade de Arquitetura, o local daquela conversa, falam por si. Por inércia, comodidade ou resignação é que se pode
admitir que aulas de projeto de arquitetura sejam ali ministradas para um grupo
de mais de 30 estudantes, em uma sala onde não caberiam mais que 20. Os motivos para esta letargia são muitos, mas não há
dúvida que os mais recentes são os mais preocupantes.
Nos primeiros dias de greve, a direção do
sindicato dos professores da UFBA deixou bem claro que tudo o que ela (não)
havia feito nos dois anos passados de negociação da categoria com o governo
revelava o quanto eles estavam comprometidos em defender mais os interesses do patrão
do que os dos professores. Diante da crescente adesão à greve no país e da
importância da representação sindical para qualquer categoria – posta em total
descrédito por esta atuação da diretoria da APUB – não tive dúvida de me engajar
pessoalmente na construção da greve. A grande mobilização de pessoas dispostas
a lutar por melhores condições de trabalho e a assembleia do dia 26 de junho são
grandes eventos em prol da recuperação das dinâmicas reivindicatórias dentro da
Universidade. E além dela.
É por isso que as questões relacionadas a
esta greve podem ser compreendidas a partir de três esferas imbricadas uma na
outra, porém distintas. A primeira delas envolve as questões que unem a pauta
nacional de reivindicações, mas que efetivamente são vividas na escala do
individual: seja no salário mensal com um poder de compra em declínio
vertiginoso, seja na janela quebrada, na ausência de um ventilador (nem pensar
em ar condicionado), na inexistência de um escritório de trabalho ou de verbas e
condições adequadas para a manutenção do acervo da biblioteca, entre várias outras mazelas vivenciadas cotidianamente.
A segunda delas diz respeito a uma
virulenta necessidade de ampliar os processos de democratização na universidade,
concretizadas na expressa ansiedade por uma criteriosa avaliação da recente expansão
de ofertas de vagas que ocorreu sem o devido planejamento e que teve como consequência
a precarização do trabalho dos docentes e dos funcionários
técnico-adminstrativos, por uma maior transparência nas contas das fundações, por
uma revisão das relações intra- e extrainstitucionais, o que não deixa de
atingir a própria atuação do sindicato.
A terceira destas esferas agrupa questões mais
amplas, que dizem respeito à situação do país atualmente, canalizando uma
grande insatisfação com a destinação dos investimentos públicos (copa do mundo
X educação e saúde), por uma reversão fundamental de uma tendência ao
aparelhamento político do Estado, pela necessidade de reinserção de uma postura
crítica de base diante do cenário político institucionalizado e pela defesa dos
direitos trabalhistas; nesta esfera a greve dos docentes universitários é um movimento
que vem se juntar à grande luta dos professores do Estado da Bahia, em greve há
80 dias.
Nestas quatro semanas pude testemunhar um
movimento surgir com toda a força e se articular para enfrentar as questões imediatas
e estruturar o enfrentamento das mais amplas, a partir de objetivos reconhecidos
como importantes para o bem comum da categoria. Para quem está fazendo parte
desta mobilização, indo às assembleias dos professores, participando das reuniões
em suas unidades, é claramente reconhecível o surgimento de uma multidão dentro
da universidade, que age nos moldes daquela descrita por Negri e Hardt em seu
famoso livro, catalisada por um evento, volátil em sua constituição. A multidão, que tomou corpo no espaço da assembleia do dia 29 de maio, neste caso, é assim percebida também por estar
composta em sua grande maioria por novos professores da universidade, que, guardando
suas heterogeneidades, como grupo, ainda não havia sido reconhecido. Seus
objetivos, portanto, não são tão voláteis como definem os dois autores; uma
perspectiva de sua reunião e funcionalização está desde já anunciada.
A sequência de assembleias das últimas
quatro semanas teve uma primeira vitória – diante dos desafios, ainda singela –
ao conseguir calar a ameaça de criminalização da greve mantida pela direção do
sindicato desde o dia 30 de maio contra seus sindicalizados. O absurdo representado por esta situação é
apenas um indício do tamanho do desafio imposto. Aos que durante todo este
tempo tentaram negar a força desta “multidão”, a grande urgência por uma permanente
consciência que não permita um descuido com os mecanismos democráticos e contra
o geral populismo que se abateu sobre a coisa pública brasileira, incluindo a
universidade, é preciso reconhecer que alguma coisa se rompeu. E isso, mesmo
que seja um pequeno primeiro passo, é muito bom.