segunda-feira, 13 de agosto de 2012

Bate-cabeça: arquitetura, urbanismo e política na era de Leo Kret ou um singelo manifesto para Salvador


por Márcio C. Campos e Any B. Ivo


Representação: política e cidade
Com as eleições de outubro próximo, chega ao fim a legislatura marcada por um fato inovador e significativo para a representação política em Salvador nos últimos dez anos, a eleição da vereadora Leo Kret. Desde então, Leo Kret pode ser vista como elemento-chave para o entendimento atual da vitalidade e da natureza da democracia em terras soteropolitanas. Em uma cidade onde a elite passou as últimas quatro décadas tentando convencer a população que o sentido maior da existência deste coletivo social era o “carnaval”, a população da cidade finalmente escolheu indicar para um cargo representativo alguém que incorporasse a sua visão do carnaval.
É assim que o estranhamento à eleição de Léo Kret ganha novo sentido: distante daquilo que acontece nos camarotes milionários do circuito Barra-Ondina ou dentro dos blocos “de cordas”, turistas ou locais, ou dos afoxés e blocos afros, Léo Kret tem a capacidade de representar o que efetivamente há de popular – ou seja, relativo às massas citadinas – no carnaval de Salvador. A resistência e mesmo o desprezo contra uma figura eminentemente popular como a da vereadora, por parte da pequena elite intelectual da cidade – tradicionalmente envolvida com o discurso esquerdista vinculado à oposição ao carlismo – é tão significativa que tem duas consequências imediatas: poucos provavelmente conhecem a sua atuação no seu mandato e outros sequer começaram a ler este singelo manifesto ou já deixaram de lê-lo antes mesmo desta frase ou, se o continuam a fazê-lo, não o tomam em sério. É essa insignificância atribuída pela cegueira da elite intelectual e suas amarras históricas que continuam fazendo de personagens como Léo Kret em Salvador e Tiririca no cenário político nacional, acontecimentos políticos “estranhados”.
Dentro da constituição ideológica que insiste em fazer do carnaval a expressão quase que totalizante do genius loci de Salvador, a eleição de Leo Kret, a dançarina transexual estrela do bate-cabelo, participante do “trio reality”, muito além de um protesto ou deboche – ou de mero atestado de falência de consciência política, como o querem muitos – é uma verdadeira afirmação popular, ou melhor, é a expressão de um novo pop além dos puxadores de blocos da classe média, de cantores intelectuais ecológicos, ou ainda, de cantores “de raízes” construídas nas análises de intelectuais. A eleição de Leo Kret, para além da representação dos pobres que moram em habitações de autoconstrução ou em conjuntos habitacionais de baixa renda, é a ampliação irônica tanto da base de gênero (representando mulheres, homens, transexuais e gays ao mesmo tempo), como da étnica. Os 12.860 votos recebidos pela “vereadora do guetho e do povão”, que defende “direitos iguais, nem menos, nem mais”, em lugar de representarem a falência da política, expressam politicamente mais uma afirmação e fortalecimento de uma nova cultura do “guetho” e da periferia. Em nome da imagem da Câmara de Vereadores, vez ou outra, a vereadora tem seu mandato ameaçado. Os erros de concordância fazem parte do pacote de deboche de uma sociedade que aceita “Os livro” ou “Nós pega o peixe” como frases ensinadas nos livros didáticos distribuídos pelo Ministério da Educação e defendidas como reconhecimento do português do “Povo”.
Os limites impostos a esta representação política, às reais possibilidades de transformação da cultura política estabelecida que um mandato exercido por alguém cuja candidatura foi construída a partir de sua popularidade fora da política, como é o caso da vereadora Léo Kret, estão estabelecidos em distintos planos. Dois destes planos estão determinados já pela própria razão de sua eleição, que é o processo duplo de fazer da festa popular que é o carnaval, a essência da vida urbana da cidade e transformar seu caráter na direção de uma elitização de gostos e costumes, gestão predatória e concentração de lucros advindos de tal gestão. Outro plano, mais elementar, e que é a base que permite que este processo aconteça, é o do retrocesso nos processos de democratização da gestão pública, reconhecível tanto no plano nacional, como especialmente resistente e amplificado nos planos estaduais e municipais. Ou seja, estes limites expressam uma lacuna entre as representações e os representados, tendo como instância mediadora a democracia instrumentalizada e não como princípio. Neste contexto, a eleição de Léo Kret é resignificada como alegoria.

Arquitetura e Urbanismo
Longe do popular, arquitetos e urbanistas estiveram tradicionalmente à disposição de colaborar com o poder. A grande razão para isso, como nos ensina Mary McLeod em seu ensaio fundamental sobre a relação entre arquitetura e política, cujo título nos serve como referência para uma divertida apropriação, é a grande soma de dinheiro envolvida em cada trabalho do arquiteto e do urbanista. Poderosos, ricos e pessoas com boas conexões com o poder constituíram na história a mais constante clientela deste profissional.
A partir das grandes transformações sociais que estabeleceram no mundo os regimes democráticos modernos, arquitetos passaram a trabalhar também para a grande massa da sociedade, estando a possibilidade e a qualidade de sua contribuição diretamente ligadas à maturação e profundidade do processo de democratização de cada sociedade. Aqui podemos comparar a situação de Salvador e Curitiba no intervalo de tempo dos anos oitenta até a atualidade. Se a final dos anos oitenta a atuação de Lelé na capital baiana pode ser comparada ao trabalho iniciado por Jaime Lerner, em Curitiba, a continuidade no trato com o urbano na capital paranaense está em franco contraste com a completa ausência de propostas efetivamente voltadas para o coletivo, nas últimas duas décadas, em Salvador.
Sem dúvida, este é um sintoma que revela o pouco que avançamos – ou mesmo retrocedemos – em termos de democratização da gestão municipal desde a efervescência do período imediatamente posterior à ditadura militar. Muito menos se reconhecem na recente história da capital baiana mecanismos eficientes e garantidores da construção democrática na cidade ou mesmo aqueles que efetivamente contribuíssem para a construção de uma cidade democrática.
Desta forma, o que se pode perceber no espaço urbano é, antes de mais nada, o reflexo da eficiência dos instrumentos democráticos de gestão de uma cidade. Na Salvador das últimas duas décadas, a contribuição profissional dos arquitetos e urbanistas para a transformação do espaço urbano foi, de acordo com tal relação, ao mesmo tempo fruto e elemento dinamizador da extrema fragilidade da democracia local. Esta pode ser reconhecida na deficiência dos mecanismos de controle em prol do bem comum que teriam como base de ação o Plano Diretor Urbano e a Lei de Uso do Solo, ambos ainda mais esvaziados recentemente dos princípios de interesse do coletivo. Trabalhando nos limites da moldura estabelecida por esta prática, seja sob encargo das empresas do setor imobiliário, seja operando dentro da máquina pública, ou, ainda, fazendo as vezes de um assistente social junto às comunidades carentes, a produção dos arquitetos e urbanistas guarda pouquíssimo campo de contribuição para a cidade. Projetando condomínios fechados, edifícios com recuos e índices de utilização, inimagináveis em outras cidades ou viadutos uns sobre os outros, participando da aniquilação da cobertura verde no território do município, elaborando milhares de peças técnicas destinadas a serem engavetadas, redigindo pareceres destinados a serem ignorados, a produção técnica do profissional de arquitetura e urbanismo – as transformações físicas no espaço – não alcança de maneira positiva a comunidade da cidade e não consegue contribuir para a melhoria das condições de vida de seus moradores. A razão principal dessa dissociação reside no fato de a cidade vir sendo governada sem o mínimo de esforço sério de democratização. A contraface dessa ausência se expressa por um processo centralizador e personalizado, tecnocrático e antiparticipativo, que estabelece a moldura para a ausência de um planejamento efetivo, o que, por sua vez, dá a abertura necessária ao avanço dos modelos empreendedores de cidade, cada vez mais elitizados e segregadores da polis.  É assim que, por exemplo, realiza-se a inversão perversa pela qual a gestão do “carnaval” se torna modelo reduzido, campo de experimentação ou “vanguarda radical” da gestão da cidade.
A ausência de qualquer critério que pudesse garantir localmente alguma qualidade para a produção da urbe é par da maneira como foi decidido o destino do Estádio da Fonte Nova, tanto a sua demolição como a escolha do que seria construído depois.  Aquilo que foi exposto em um shopping center na cidade sob o título de Salvador Capital Mundial, “oferecido” à prefeitura, só pode ser compreendido como um enorme “presente de grego”. Sua mais recente versão em escala arquitetônica é o processo decisório que levou à escolha do projeto de arquitetura do temeroso edifício para o novo terminal de passageiros no cais do porto de Salvador.  A ausência de instrumentos que garantam a transparência e o cumprimento das regras democráticas na escolha de projetos para edifícios e intervenções urbanas, com ou sem financiamento público, é a medida do pouco que há a contribuir através da produção profissional para a coletividade. Urge um compromisso do coletivo social com a vontade de democratização e resgate da civitas.

Participação e Democracia
Uma jovem comentou outro dia: moramos num país democrático, onde cada um tem o direito de fazer o que quer. Em outra ocasião foi dito que respeitar e reconhecer as deliberações coletivas seria uma decisão do fórum íntimo.  Ou seja, cada vez mais, a noção corrente de democracia passa do reconhecimento da vontade da maioria, ou da difícil tarefa de construir diálogos, para uma instância que se restringe a salvaguardar interesses particulares. Dessa forma, desloca-se a ideia de democracia do campo coletivo para a esfera individual, num mundo extremamente marcado pela valorização do individual. Soma-se a esse cenário a instrumentalização da participação como elemento chave à construção simbólica de democracia.
Participação, o ato de participar, traz intrinsecamente um paradoxo que irá permanecer nos ordenamentos coletivos: se por um lado significa comunicar ou informar, abrange também a ideia de partilhar, de compartilhar ou de tornar-se parte de algo. Esses dois sentidos originários da palavra, quando transpostos para os arranjos e ordenamentos coletivos, servem a duas posturas distintas e divergentes, com resultados práticos bastante diversos: por um lado, a comunicação ou a informação sobre deliberações como base para a legitimação de uma gestão participativa e, por outro lado, o desejo e a expectativa de ser parte, de compartilhar direitos e responsabilidades, de partilhar dos processos decisórios por grande parte da população historicamente excluída. Frente a essas duas dimensões da política, “democracia” e “participação”, faz-se necessário reaprender na prática o que é a experiência da cidadania, a participação efetiva como direito de todos e princípio originário dos processos decisórios que como condição de pertencimento e de polis.
O reaprendizado e o constante, porém lento, processo de enraizamento da democracia é árduo e desafiador, pois significa na prática reconhecer previamente a possibilidade de abrir mão ou perder ou aceitar o outro. A experiência da cidadania e o aprendizado da democracia se dão no cotidiano, no dia-a-dia: no trabalho, nas associações, nas ruas, nos condomínios, nos bairros, etc. Aprende-se a democracia no exercício de escutar, de reconhecer o direito de voz do vizinho, a sua experiência e o seu conhecimento de cidade. É necessário compreender que o discurso técnico, como instrumental político, é acionado em muitos casos para gerar a exclusão, ou seja, para restringir o princípio participativo à condição meramente informativa (quando não desinformativa).
Sendo assim, como qualquer outro cidadão, o primeiro compromisso do arquiteto e urbanista implica na urgente necessidade de uma efetiva democratização do poder, que hoje não pode deixar de passar por uma sincera abertura em direção à ampliação da participação, que venha a constituir um real interesse na democratização da gestão pública. Tal programa político inevitavelmente terá em seu horizonte de ação a retirada das massas populares da condição de “mera clientela”, seja ela política, seja profissional. A democracia a ser construída não virá da parte do sistema político, virá da experiência de cada um na reunião do seu condomínio, da sua associação de moradores da rua, do bairro, na árdua construção de possibilidades de participação democrática nas instâncias mais elementares dos desafios da vida em sociedade.
Dentro daquilo que diz respeito ao campo profissional, cabe ao arquiteto e urbanista um duplo engajamento: se por um lado não há como atuar positivamente em uma cidade sem este horizonte de construção democrática, que no caso de Salvador indica um caminho longo a ser traçado, por outro lado, há que se lutar por uma democratização dentro do seu próprio fazer profissional, tão marcado pelos privilégios de contatos com o poder. Aqui, ao menos duas áreas podem ser imediatamente citadas: a primeira, que diz respeito aos modos e critérios relativos ao acesso ao trabalho, especialmente da destinação de dinheiro público para a área de arquitetura e urbanismo. Faz-se urgente a transparência e abertura, como novos critérios para contratação, que, por exemplo, venham a eliminar a noção perversa da orientação da escolha pelo menor preço determinada pelas licitações e que venham a abrir efetivamente os encargos a toda a comunidade de arquitetos e urbanistas: a palavra-chave é a consolidação do instrumento de concurso público para toda obra com financiamento de origem pública, incluindo obviamente recursos advindos do FGTS para habitação. A segunda diz respeito ao estímulo ao debate, divergência e participação dentro das representações profissionais próprias, marcadas infelizmente por uma cultura de eleições com chapas únicas, superposições de atribuições e pouca participação. Que cada dimensão deste intricado jogo de democratização e participação nas instâncias representativas profissionais não pode ter lugar sem que as outras também entrem em movimento, é mais que evidente.
Defender a participação não é, por fim, apelar para o populismo barato que celebraria o recuo completo da atuação profissional por motivos estéticos, niilistas ou cinicamente paternalistas. A tarefa é árdua e sem resultados imediatos. É nesse sentido que reforçamos a importância de que os arquitetos e urbanistas compreendam o potencial de uma gestão democrática da cidade, reconhecendo o direito a voz de todo e qualquer cidadão à construção de um projeto democrático para uma cidade democrática.  Fortalecer as arenas de participação propositiva mais ampla, levadas realmente a sério, como elemento propulsor dos projetos de cidade é um bom começo. Para uma cidade além do “carnaval”, há muito para “bater as cabeças”.

sexta-feira, 3 de agosto de 2012

dois meses em greve

O teatro pode parecer perfeito, da perspectiva de quem montou a encenação: o patrão acerta com os pelegos que um mês antes das férias eles estariam liberados para organizar uma "greve" no período coincidente com o das férias. Os pelegos fazem de conta que iniciam uma greve na última semana de trabalho do semestre, quando todas as aulas já poderiam ter sido encerradas; juntos com o patrão encenam uma negociação e decidem fechar um acordo uma semana antes de as férias terminarem. Assim, pelo roteiro esquemático deles, as férias viararam greve, para que o patrão e os pelegos não perdessem nada e ainda pudessem dizer aos estudantes que, se fosse por eles, não haveria nenhum atraso no semestre. Acontece que este teatro tem um cenário vagabundo, uma iluminação desastrosa e um diretor sem nenhuma noção de consistência dramática. E ninguém está mais sentado na platéia.