Em outubro do ano passado, por ocasião das comemorações dos 125 anos do Burgtheater, o mais importante teatro da Áustria, um assistente de plateia causou um pequeno escândalo ao usar a pausa para chamar a atenção para as suas condições de trabalho. Como ele, outros 400 trabalhadores dos teatros vienenses são empregados da firma G4S, contratada pela holding criada para administrar os teatros, quando em 1996 estes deixaram de pertencer diretamente ao Estado.
Sua fala foi interrompida pela curadora do evento, cujo título "Com que teatro sonhamos?" servia de mote para a apresentação de perspectivas e um balanço do passado e presente da importante instituição, mas pode ser
lida aqui em sua íntegra (em alemão). G4S é uma empresa dinamarquesa com sede em Londres, oferecendo principalmente serviços de segurança e vende mão-de-obra em mais de 120 países, ocupando postos de trabalho que, em boa parte, estavam antes ocupados por funcionários públicos.
Desde ontem no Brasil se teve acesso a um documento que apenas comprova o que todo mundo já sabia: a empresa Sociedade Mercantil Cubana Comercializadora de Serviços Médicos Cubanos mantém um contrato com o governo brasileiro semelhante em sua estrutura àquele entre a G4S e a Holding dos Teatros Vienenses.
Mundo afora, a política nacionalista de proteção de postos de trabalho continua a render votos, o que é percebido como forte contraponto à livre circulação de mercadorias. Mas apenas em parte, como as empresas dinamarquesa e cubana mostram. Dentro de um esquema onde o que se chamava de terceirização nos anos 90 parece um paraíso de garantias trabalhistas, estas duas agentes no mercado globalizado de bens e serviços dão um passo adiante na coisificação do ser humano. Deixa-se literalmente de se explorar o valor extra do trabalho de um cidadão (que teria assim um contrato social que lhe garantiria direitos não somente trabalhistas) para se mercantilizar a cabeça da mão-de-obra. Como se gado fosse. Como se máquina fosse. Sobre a diferença com que o governo brasileiro está disposto a contratar médicos estrangeiros que não sejam cubanos em relação às condições com que os cubanos tem sido contratados há muito para ser discutido, ainda.
Eu sinto por esta médica pedir asilo em um país onde a vida humana conta tão pouco, talvez tivesse sido melhor para ela estar em uma sociedade onde o Estado cumpre o seu papel principal.
Por isso, mais do que nunca, espero que aqueles que se esforçaram tanto em receber bem os médicos cubanos (especialmente contra a grosseria estúpida que se viu em alguns aeroportos no Brasil), agora tratem esta médica ainda melhor. Afinal, como indivíduo lutando pela liberdade contra estruturas tão autoritárias como de grandes dimensões, ela merece uma ajuda. Ou, ao menos, que sejam refeitos os votos de bem-vinda.