sábado, 26 de dezembro de 2015

o melhor de um ano onde quase tudo foi pior, ê 2015 difícil

No XI Panorama Internacional Coisa de Cinema
2015, o ano que termina projetando uma horrorosa sombra sobre o próximo; o ano da lama; mas houve o que de bom para lembrar.
exposição: Lelé em Colônia, Alemanha, no início do ano, e Josef Frank, agora no final do ano, no MAK.
hashtag: #youshouldbettereatarchitecture
melhor disco: The Magic Whip, Blur.
melhor filme: Boi neon, de Gabriel Mascaro.
melhor canção: muito difícil escolher que canção entre as de The Magic Whip seria a melhor, talvez Pyongyang.
leitura: retomei e li por completo, no original em inglês, On Liberty, de John Stuart Mill.
arquitetura: o Kolumba Museum em Colônia, Alemanha, a abadia de Pomposa, mausoléu de Teodorico, o MAXXI, a catedral de Spoleto.
evento: sem dúvida, o XI Panorama Internacional Coisa de Cinema.

sábado, 5 de dezembro de 2015

Quintal e Em Paz, dois curtas no Panorama Internacional Coisa de Cinema (antes tarde do que nunca!)

Não assisti a muitos curtas no XI Panorama Internacional Coisa de Cinema, mas entre os que tive a chance de ver dois merecem um comentário, ainda que tanto tempo depois. O primeiro deles é Quintal, de André Novais Oliveira, acertadamente premiado no Panorama. Quintal é provavelmente a mais inteligente, divertida, trash, aguda, inquietante e desconcertante produção artística de 2015 no país. Este exagero meu é reflexo da grande sensação de um vento forte e refrescante, varrendo tudo, que o filme deixou: urbano, nonsense e com um título acadêmico, como as coisas ao nosso redor.
O outro filme de que gostei muito foi Em Paz, de Clara Linhart. Em Paz trata de espaço e memória urbana: a diretora, em um filme muito bem editado e que se utiliza da inserção musical como um excelente mecanismo de estruturação da narrativa fílmica, demonstra, de uma maneira mais que didática, tanto os elementos que compõe a memória urbana como toca em questões essencialmente espaciais, em seu documentário sobre o cemitério das prostitutas judias no Rio de Janeiro.
A partir de um muro e um portão, Clara Linhart apresenta ao espectador a memória guardada pela vizinhança, a memória recuperada pelos estudiosos, a memória reorganizada pela construção identitária e a memória registrada na cultura popular, para ir desvendando aos poucos tudo que aquele espaço, mais que representa, define, mantém, estrutura, abriga e articula, desafiando a dinâmica urbana e demonstrando o quanto ele - qualquer espaço! - precisa ser entendido menos como um livro aberto e mais como uma pedra de roseta ou um palimpsesto irreproduzível. E percebendo esta impossibilidade de reprodução, associada ao caráter sacro que o cemitério judaico guarda para o espaço - exatamente aquele único ali, que não pode ser tocado - o documentário revela muito precisamente como o espaço é tão comumente neglicenciado e como dele não se pode escapar. Imperdível para arquitetos, Em Paz é primoroso em tornar acessível ao público em geral questões tão importantes como esquecidas.

quinta-feira, 5 de novembro de 2015

Travessia, no XI Panorama Internacional Coisa de Cinema


Travessia, o filme da sessão de encerramento do XI Panorama Internacional Coisa de Cinema, conta a história de desencontro entre pai e filho, personagens interpretados pelos atores Chico Diaz e Caio Castro. Estamos em Salvador, sabemos que a mãe/esposa está morta e que no meio das diferenças entre os dois personagens há uma disputa que envolve o inventário de família.
Com uso um tanto excessivo da combinação de tomadas com baixa profundidade de campo e close-ups, o filme aposta na construção psicológica dos personagens, que entretanto não adquire o relevo suficiente para que compreendamos as razões para tamanho desencontro familiar ou venha a estabelecer elos significativos com os acontecimentos da trama.
A inserção da trilha sonora, um tanto cansativa, e o ritmo narrativo, que poderia ser mais vigoroso, tampouco contribuem para o filme deslanchar ou envolver o público. Com algumas tomadas de Salvador muito bonitas, o filme não encontra firmeza nas opções estéticas e acaba sendo encerrado com um formalismo previsível.

quarta-feira, 4 de novembro de 2015

Boi Neon, no XI Panorama Internacional Coisa de Cinema


A expectativa gerada a partir da conquista pelo filme Boi Neon do prêmio da mostra Horizontes no Festival de Veneza, na Itália, é plenamente satisfeita: o filme dirigido por Gabriel Mascaro deve ser não somente o melhor filme lançado este ano no Brasil, senão também um dos melhores dos últimos anos.
O filme mantém-se em alto nível em todos os seus elementos: a impecável atuação do conjunto de atores, o excelente roteiro, a fotografia que acompanha a narrativa sem tentar assumir qualquer protagonismo, a trilha sonora, a direção de arte e, acima de tudo, a cuidadosa construção do desenrolar da trama e o seu encerramento.
Boi Neon explora muito bem as tensões entre os personagens decorrentes da própria ambivalência de sua atividade de trabalho: entre a manutenção do gado e a vida na estrada como artistas circenses, a história vive de uma série de articulações, umas possíveis, outras imaginárias, outras concretas, que a moldura oferecida pela confluência entre o ambiente rural e o mundo do espetáculo oferece: é daí, desta ambiguidade, que surge a riqueza não somente do personagem central, interpretado por Juliano Cazarré, o vaqueiro que gosta de corte e costura, como de todo o conjunto formado pelas figuras coadjuvantes.
Em comum com Big Jato, o outro filme exibido nesta edição do Panorama Internacional Coisa de Cinema cuja história se desenrola no nordeste brasileiro fora das metrópoles, o filme apresenta o cotidiano de empreendedores autônomos, à margem do processo mais recente de industrialização e modernização, que aparece em distintas intensidades como um pano de fundo de contraposição das histórias. Mas apenas isso os dois filmes têm em comum. No filme dirigido por Gabriel Mascaro a economia dos meios e a precisão da inflexão dramática no meio da trama são tão bem calibradas que o diretor constrói sutilmente a crescente ansiedade do público em direção ao desfecho do Boi Neon.
E se há algo contracultural neste filme em relação aos temas amplamente debatidos no país hoje, o Boi Neon pode também ser visto como uma espécie de manifesto anti-queer. E aí, é um filme deliciosamente irônico, algo mais uma vez apenas possível por saber explorar magistral e sutilmente as ambivalências e ambiguidades. Imperdível.

Garoto, no XI Panorama Internacional de Cinema


Ontem minha programação no Panorama foi contracultural (no sentido mais aberto da expressão, distante do seus significado ligado mais precisamente aos anos 60): tanto Garoto como Boi Neon são filmes que desafiam valores, opiniões e agitações muito em voga no país atualmente. E por isso já possuem um valor à parte.
Garoto, o filme dirigido por Júlio Bressane, segue a tradição do diretor, de obras muito pessoais. Fotografia com ênfase em diagonais planas e perspectivas do eixo vertical dramatizadas marcam a primeira parte do filme, enquanto a segunda, em contraste visual e de ambiência (do bosque à caatinga), é marcada por perspectivas aéreas de paisagens.
A distinção entre os dois momentos no filme - a que corresponde à mudança de protagonismo entre os dois personagens, já que a garota cede ao garoto esta posição depois desta transição - é clara e precisa, afinal o filme é uma versão cinematográfica da antiga história de Eva e Adão. O tempo é longo, assim como é de épocas imemoriais o bolero.
O que tem de contracultura no filme? À passagem da dupla de Eva e Adão para Adão e Eva corresponde uma visão igualmente feminista e anti-feminista desta versão ficcional da origem da espécie humana no planeta. No país onde a palavra deconstrução é tão incompreendida como abusada, a elaborada extensão no tempo desta ficção, acompanhada de um excelente desenho de sons, poderia até ser didática (sem excessos de formalismos). Mas desconfio que poucos assistirão a este Garoto.

segunda-feira, 2 de novembro de 2015

Big Jato, no XI Panorama Internacional Coisa de Cinema


Big Jato é um bom filme de entretenimento, o que é sublinhado várias vezes por um dos personagens, e um representante clássico do que se convencionou chamar "cinema de Pernambuco", com seus sotaques, ambiência em um interior capaz de guardar os segredos das histórias universais e boa fotografia. O público se diverte com o filme e aplaudiu com vontade no final da sessão de ontem no XI Panorama Internacional Coisa de Cinema.
A história de um menino que acompanha seu pai em um caminhão limpa-fossa combina o processo de amadurecimento de um adolescente em vias de se tornar um adulto com o motivo do anjo bom e do anjo mau tentando interferir nas decisões que marcam este processo. Família, conexão com o vasto mundo, sexualidade, trabalho, poesia e amor são os desafios colocados no percurso, que tem no ir e vir do caminhão limpa-fossa uma interessante metáfora dupla dos ciclos aparentemente imutáveis, mas constantemente "ameaçados" pela sedução dos processos de modernização.
Calcado fortemente na excelente atuação dupla de Matheus Nachtergaele, o filme dirigido por Cláudio Assis peca entretanto por alguns excessos (há personagens demais, a exemplo do Príncipe ou da irmã na família, cujas funcionalidades na trama não ficam claras, um exagero um tanto artificial na literariedade de algumas falas e na repetição de algumas tiradas engraçadas) e por uma ou outra cena onde o conjunto dos atores não parece dar conta da dramaticidade requerida. O grande destaque vai para o difícil equilíbrio conseguido entre três personagens centrais dentro de uma história que a princípio teria um protagonista indiscutível, o que gera uma interessante tensão.
Há algo mais, talvez um tanto difuso, que fica após ter visto Big Jato: será o momento de ser avaliado um determinado protagonismo que a fotografia - estonteante, arrebatadora - assumiu no cinema no país?

domingo, 1 de novembro de 2015

A Loucura Entre Nós, no XI Panorama Coisa de Cinema


A Loucura Entre Nós, filme apresentado ontem em mais de uma sala no XI Panorama Coisa de Cinema, é um documentário que mostra aspectos do tratamento dado a distúrbios mentais, acompanhando a vida de duas mulheres durante mais de um ano. As singularidades dos personagens estão garantidas pelas diferenças de idade, classe social, estrutura familiar e formação. As duas protagonistas e os personagens secundários nos ensinam que uma pessoa em tratamento hoje pode estar enquadrada em três situações distintas: internada no hospital, participando de terapias ocupacionais com uma grande carga horária semanal e levando uma vida cotidiana essencialmente fora destes dois espaços apoiada no uso regular de medicamentos.
O filme deixa claro que estas situações correspondem a espaços de vida distintos, com fronteiras muito claras, o que fica evidente na satisfação que gera a transferência da unidade de terapia ocupacional para um endereço distinto do hospital.
O espaço como elemento definidor destas estratificações da loucura aparece marcado desde o começo do filme dirigido por Fernanda Fontes Vareille; na cena inicial, a porta do Hospital Juliano Moreira, em Salvador, é aberta pelo funcionário e, embora seja uma porta de correr de vidro e madeira em uma fachada moderna, o arranque do filme sugere pela solenidade do enquadramento que esta é uma porta que não se abre tão facilmente. Efetivamente, a câmera irá permanecer a maior parte do tempo numa espécie de vestíbulo, a partir do qual os internos da instituição são filmados atrás de uma grade que só é aberta com muita precaução e muito raramente.
Se relacionado ao título do filme, a loucura entre nós, o resultado da câmera parada ali no vestíbulo e da sutil demonstração de oposição no decorrer do acompanhamento das duas personagens através da narrativa suave e alternada, ainda que ofereça uma obra de ritmo, não consegue enfrentar a loucura que vemos e escutamos ali naquele vestíbulo gradeado e que definitivamente não está entre nós. A melhor prova disso é que o travelling durante a tão aguardada visita ao interior do módulo 2 é o melhor momento cinematográfico do filme, quando finalmente a fronteira mais importante é rompida e o cinema se coloca no meio da loucura, articulando a inversão do seu mote. Suave e contido, o filme, mesmo apresentando personagens em transição entre distintas situações, ao evitar ultrapassar mais consistentemente as fronteiras, acaba por não explorar todo o potencial do que seria estar entre. Dito de outra maneira, se a loucura é o que está entre nós, aquilo que permanece rigidamente separado ainda pode ser assim chamado?

sábado, 31 de outubro de 2015

Tropykaos, no XI Panorama Internacional Coisa de Cinema


Em um dos textos fundamentais para a compreensão do pós-modernismo em arquitetura nas Américas, Mary McLeod cita uma discussão sobre a definição do caráter regional da Flórida, na qual um dos argumentos apresentados contra uma elaboração por demais discursiva de um caráter regional num ambiente de pouca densidade histórica apresentava o aparelho de ar condicionado como a identidade regional da Flórida por excelência.
Em Tropykaos, que teve sua estréia para o público ontem, dentro da programação do XI Panorama Coisa de Cinema, o aparelho de ar condicionado é muito mais que um elemento da identidade local, ele assume a função de prótese física essencial para a sobrevivência em Salvador.
Guima, o personagem principal do filme, afirma em tom desesperado e lúcido: "eu não estou preparado geneticamente para viver nesta cidade", conquistando assim a adesão imediata do público a sua causa. Eu, que já possui um aparelho de ar condicionado do mesmo modelo que o visto no filme e que trato a canção Everyday is like Sunday de Morrissey como o hino secreto de Salvador, considero-me mais que representado na tela.
Como uma espécie de anti-ode a Salvador, o primeiro longa de Daniel Lisboa utiliza do aparelho de ar condicionado como metáfora invertida para falar sobre a dificuldade de se viver neste grande artefato de caráter urbano. O grande destaque fica por conta da cena onde Guima carrega ao ombro a sua prótese resfriante - e o personagem literalmente é esquentado pela "ultra violência solar" - subindo a Praça Castro Alves, recriando a imagem clássica de Atlas, cuja esfera do mundo e todo o seu peso aparecem ali, em Salvador, substituídos por um volume com arestas e precisando de conserto.
Mas enquanto o filme abre com declarações contundentes e fortes imagens (destaque para a sequência no Porto da Barra), a homenagem a clássicos do cinema baiano perde seu vigor com o desenrolar do filme, deixando o espectador um tanto desapontado com certa linearidade do roteiro. No final, mesmo uma constatação dos desígnios inalcançados das promessas de modernização da Bahia, filmada no lugar onde aconteceu em 1912 seu ato original, o bombardeio do centro, corre o risco de sequer ser percebida como provocação.
Se não há dúvidas sobre a opção estética do filme, guarda-se este primeiro longa do diretor como uma aposta em futuros com desenvolvimento de enredo mais sutil e multidimensional. E sempre em salas climatizadas!

Aqui Deste Lugar, no XI Panorama Internacional Coisa de Cinema


O segundo filme de Sérgio Machado no Panorama de 2015 é o documentário Aqui Deste Lugar, filmado em 2013 em parceria com Fernando Coimbra, que mostra três famílias brasileiras beneficiárias do programa Bolsa Família. O mote do filme é investigar o cotidiano de famílias que recebem a complementação de renda do Estado a partir de um lugar muito específico: o interior da casa. Se o foco do programa é a garantia da segurança alimentar, a tomada de decisão é mais que acertada.
Como o diretor explicou no debate após a sessão de ontem no Panorama, a escolha das três famílias foi baseada em um estudo estatístico detalhado que buscou encontrar famílias típicas inseridas no programa. A diversidade das situações a individualizam: as famílias moram em regiões distintas do país (Sul, Sudeste e Nordeste) e em situações urbanas também muito distintas (metrópole, cidade média e pequena cidade).
Sérgio e Fernando registram que, além do direto incremento da renda das famílias (e o público é quase didaticamente apresentado a panelas e mamadeiras cheias), o Estado brasileiro faz parte do seu cotidiano em outras duas situações: através das escolas e das assistentes sociais ligadas ao programa, que interrogam as famílias de maneira mais ou menos burocrática, com a finalidade de controlar os critérios para a continudade do benefício.
O filme, que segue uma montagem clássica ao intercalar as histórias das três famílias assegurando um bom ritmo à montagem, guarda sua grande qualidade ao se esforçar para se manter num campo neutro ao tratar de um tema tão polarizante no país: o registro é feito sem um narrador ou entrevistador, com a câmera simplesmente inserida na casa, o que divertidamente acaba por estimular aqui e ali um certo comportamento big brother de um ou outro retratado.
E é exatamente esta neutralidade que permite que o filme, ao entrar na casa das pessoas, migre da sua ideia inicial para, em primeiro lugar, constatar o papel decisivo das mulheres no desenho e manutenção das estruturas familiares mostradas no filme (e desde a primeira cena do filme este protagonismo é evidente); e, em segundo lugar, para nos lançar mais uma vez a questão que somente o mais convicto dos materialistas pode renegar, sobre a natureza do que nos é apresentado como problema: estão nas condições materais o cerne dos problemas apenas tangenciados por um programa como o bolsa família ou são todos os defeitos das formas e maneiras como os arranjos familiares são construídos e mantidos que levam as pessoas a viverem em tais condições? A última frase do filme levanta exatamente esta questão.
A mesma intenção de neutralidade, entretanto, com que se entrou na casa talvez não tenha permitido lançar um olhar, ainda que apenas furtivo, sobre o vizinho. O filme, ao atomizar as famílias, não toca na linha de renda estabelecida pelo programa, e assim fica no ar a inquietação por saber o que acontece em termos de dinâmica social para quem está imediatamente do lado de fora desta linha. Aqui Deste Lugar, um filme que merece ser visto por muita gente, deixa então o convite para o lugar da casa ser envolvido pelo lugar da rua e do bairro.

quinta-feira, 29 de outubro de 2015

Tudo que aprendemos juntos, na abertura do XI Panorama Coisa de Cinema


A abertura do XI Panorama Coisa de Cinema, ontem à noite no Espaço Itaú - Cine Glauber Rocha, foi um sucesso de público, com salas lotadas por uma platéia ávida pela programação muito interessante que ocupará as salas de cinema na Praça Castro Alves, na sala Walter da Silveira e em Cachoeira até o próximo dia 4 de novembro. O Festival é sem dúvida um dos pontos altos da programação cultural na Bahia e a seleção de filmes apresenta títulos já bastante aguardados em um painel diversificado que serve de principal mostra da produção de cinema local. Ontem na abertura, além de uma apresentação de música antes da exibição do filme Tudo que Aprendemos Juntos, o clima de confraternização se estendeu após a exibição do filme em uma festa no próprio espaço do cinema.
Tudo que Aprendemos Juntos é o mais novo filme do diretor baiano Sérgio Machado e conta com Lázaro Ramos no papel principal encarnando um músico erudito que, no intervalo de tempo de pouco mais de um ano, entre duas audições para concorrer a uma vaga na OSESP, precisa aceitar, para poder pagar as contas, o trabalho de professor de música de adolescentes que vivem em uma favela e ensaiam sem nenhuma orientação valiosa na quadra de esportes do colégio.
O filme tem produção muito boa, a edição é de destaque, assim como a atuação do grupo de atores que fazem os papeis dos adolescentes e de Sandra Corleoni, principal coadjuvante no elenco, em contraposição a Lázaro Ramos, que apenas mantém o padrão de performance já conhecido. Se fosse possível escolher um adjetivo apenas para o filme, seria redondo: não somente há um determinado nível de profissionalismo em todos os aspectos técnicos do filme, como também a narrativa prefere se acomodar à opinião pública mais ou menos vigente na classe média universitária sobre o ambiente social em que a história é contada: nós somos convidados a descobrir humanidade no chefe do tráfico que domina a favela e a única representação completamente má é conferida à polícia.
Talvez seja este o problema do filme: diferente da tradição da ópera, onde as encenações das histórias por demais conhecidas do público desafiam seus conteúdos ao deslocá-los para ambiências contemporâneas ou muito distintas das originais, em Tudo Que Aprendemos Juntos ao clássico enredo professor-enfrenta-turma-problemática é acrescentada inquietação apenas de maneira muito tímida, escapando mesmo pela tangente.
E isso que o filme tinha a chance para explorar de maneira incômoda a ambígua e questionável relação entre as classes médias com culpa social e os moradores pobres de bairros desprovidos de infra-estrutura no país. Mas o filme prefere arredondar as arestas, amenizando os dilemas que esta reflexão poderia trazer ao seu personagem principal, apresentando o desfecho como uma win-win situação. Tudo indica que o filme fará uma boa bilheteria no Brasil.

terça-feira, 20 de outubro de 2015

da bahia

a decadência latente e alerta, pronta para se espraiar sobre tudo, foi a maneira que a bahia encontrou de ter a chance de continuar a ser bahia.

quinta-feira, 6 de agosto de 2015

sobre o 6 de agosto

Estes dias eu so tenho lembrado das votacoes sobre a EBSHER na universidade.
E como tenho me lembrado disso...
Afinal, estamos diante de uma situacao identica, extrapolada do hospital universitario para a universidade como um todo.
A unica solucao que o governo tem hoje para o corte de verbas é a privatizacao, mesmo que parcial e camuflada de "empresa de interesse publico", autonoma para fazer muitas coisas com o hospital, como é o caso da EBSHER (por exemplo, esta empresa pode assinar contratos com universidades privadas para usar as instalacoes do hospital para a formacao de medicos destas universidades, em detrimento da qualidade da formacao dos estudantes da federal).
Entao eu imagino que o argumento de defesa da EBSHER, usado agora para toda a universidade, deveria encontrar amplo apoio na comunidade acadêmica, como foi o caso do hospital há alguns anos.
Ou nao?

A minha interpretacao da situacao atual, que venho compartilhando com colegas mais proximos desde o inicio da discussao sobre os cortes (ou seja, antes da greve) é que temos 50% de cortes que correspondem exatamente ao numero de estudantes que hoje acessam a universidade fora do sistema de cotas: entao, há um contexto politico construido para solicitar a estes que acessam sem cotas que contribuam para a recomposicao do orcamento. E tenho a impressao que muitos dentro da universidade aprovariam tal solucao, já que 50% dos estudantes continuariam tendo acesso "publico e gratuito" às universidades federais.

terça-feira, 30 de junho de 2015

Do documentário sobre Artigas

O filme é muito bom. Formalmente, acerta ao usar do recurso de fazer coincidir início e fim, ao tratar de uma biografia cujos eventos finais foram melancolicamente dramáticos. O recurso aqui, portanto, não parece formalismo.
Não poderia ser, afinal Artigas explica muito bem em sua aula registrada no filme com que finalidade a elaboração de sua arquitetura trata os precisos recursos formais.
O mais impressionante do filme é a historicidade do que ali é documentado: o quanto o ensino de arquitetura mudou radicalmente de meados dos anos 80 para cá, o quanto a figura do professor Artigas parece ligada a um passado completamente encerrado diante do contexto contemporâneo de ensino e produção de arquitetura. E o quanto ele era gênio, ao responder da forma como responde à pergunta sobre o futuro a ele feita em sua última entrevista.
Edfícios e desenhos muito bem filmados, entrevistas bem editadas, o filme tem apenas dois pontos fracos: a entrevista de Raí e o uso da música de estrutura repetitiva (é impressionante como 30 anos depois, os filmes para os quais Phillip Glass compôs música ainda permanecem como uma referência quando as pessoas pensam em trilhas sonoras para filmes sobre arquitetura).
E ainda teve o "perfil psicológico" "filho de viúva jovem".
Recomendo e muito.
PS não deixa de ser triste ver que arquitetura anda tão desvalorizada que o ingresso para assistir ao filme é gratuito. E que mesmo assim não havia mais de 15 pessoas na sala do cinema.

quinta-feira, 28 de maio de 2015

Reflexões sobre a demolição dos casarões na ladeira da montanha ou Observando os urubus se refastelando na carniça

Esta é uma reunião dos postings que escrevi nas redes sociais sobre a reação "apaixonada" contra as recentes demolições nas Ladeiras do Centro Histórico de Salvador:

1.A ladeira da montanha é uma aula sobre os processos de longa duração.
nao quer dizer quase nada sobre chuvas, encostas e tratores.

2. Está chocado/a com o destino trágico da ladeira da montanha mas:

a. "achou massa" a demolição da Fonte Nova para que Salvador fosse sede da Copa do Mundo ‪#‎toudeolhoemvoce
b. nem percebeu que nao existe mais nenhuma das árvores centenárias no fundo da Escola de Belas Artes ‪#‎toudeolhoemvoce‬
c. nunca foi à casa de Ruy Barbosa (ali no centro, sabe, tem uma rua com o mesmo nome; mas talvez voce nem saiba quem foi Ruy Barbosa, né? conta aí, vai)‪ #‎toudeolhoemvoce‬
d. nunca sentou na praça municipal para tomar um milk shake na Cubana (nem sabe o que é a Cubana, confesse aí, vai) #‎toudeolhoemvoce‬
e. nunca desceu a pé o Taboão ‪#‎toudeolhoemvoce‬
f. nem sabe onde fica a estrada da Rainha, aliás, onde ficava, pois a avenida que liga a rótula do abacaxi ao porto a destruiu, e como você nem sabe onde a estrada da Rainha ficava, você nem pôde se indignar ‪#‎toudeolhoemvoce‬
g. não vê nenhum problema no desenho da monstruosa linha de metrô na Avenida Bonocô ‪#‎toudeolhoemvoce‬
h. não assinou a petição pública contra o shopping sobre a Estacao da Lapa‪#‎toudeolhoemvoce‬
i. acha linda a praça da cruz caída (que foi posta no lugar de uma obra de Lina Bo Bardi).‪#‎toudeolhoemvoce‬

3. Me diga aí, você já subiu a pé alguma vez na sua vida a Ladeira da Montanha? Ou já desceu a pé, que é mais fácil? Entendeu porque não é de agora que o que restava dos casarões está destinado à destruição?
‪#‎nãovaleagoratirarondadedefensordopatrimonio‬

4. A ladeira da montanha é como o Charles Hebdo: em nome de um ataque político (ideologia estúpida) as pessoas aparecem defendendo e atacando coisas muito estranhas a elas mesmas.

5. de novo eu li "projeto de gentrificacao", pelo visto pegou; eu leio isso e é como ouvir alguém falar menas. eu acho que vou dar um toque pros donos da sorveteria da ribeira. como eles cresceram tanto, comprando o terreno do fundo para estacionamento, logo logo eles serao demonizados como agentes da gentrificacao. ‪#‎estupideznaotemlimites‬ ‪#‎aindamaisnabahia‬

6. Os urubus continuam disputando a carniça. E olha que já antes do ataque restava pouca coisa além de osso.

7. a ladeira da montanha hoje nao foi chorar sobre o leite derramado, foi urubu na carniça mesmo.
e uns urubus danados de letradinhos.

8. A ladeira da montanha está abandonada há décadas e enquanto passarem ali as inúmeras linhas de ônibus que ali aniquilam qualquer noção de qualidade ambiental, nada pode ser feito para um uso decente dos edifícios. As casas podem até ter sido derrubadas ontem, mas a decisão deste destino foi tomada há décadas e este tempo todo o gran finale foi continuamente preparado. A chuva deste maio foi tão somente uma gota d'água.

sexta-feira, 8 de maio de 2015

O catador na floresta de signos: Alexandre Mury na Galeria Roberto Alban


Inaugurada ontem à noite na Galeria Roberto Alban, em Ondina, a exposição O catador na floresta de signos, que mostra fotografias elaboradas pelo artista Alexandre Mury tendo os orixás como tema central, reúne um conjunto de imagens cujo rigor estético permite uma continuidade no enfrentamento de questões que perpassam a sua obra, como a autonomia da imagem e a tensão entre repetição e diferença.
A obra de Mury faz vibrar a inquietação muito contemporânea do desequilíbrio em favor da mensagem e em detrimento do meio: fruto da cultura compartilhável, da intercambialidade de formatos, o conteúdo parecia retomar fôlego depois de décadas de primazia da forma.
Na época dos passeios virtuais pelos grandes museus do mundo, as suas reproduções fotográficas de exemplares famosos da história da arte, tematizam a questão do conteúdo de um outro ângulo: e quando a imagem é em si o conteúdo cultural que possuímos - e a estratégia de reconhecimento de repertório por parte do público é mecanismo essencial para o seu trabalho - como paradoxalmente amplificar a sua validade cultural, sem cair no fetiche da experiência da verdade material
da obra única, que por si só é "apenas suporte" da imagem?
Aqui entra o espírito divertido e leve no tratamento da diferença na repetição: Mury reconstrói em estúdio - e por isso suas fotografias são elaboradas - as cenas retratadas em famosos quadros da história da arte, assumindo o protagonismo das figuras neles retratadas, para fazer valer a diferença na repetição, sublinhando e amplificando a autonomia da imagem, daquilo que ironicamente acreditamos como autônomo a cada uma das milhares de vezes que a reproduzimos.
O passo que Alexandre Mury dá nesta exposição é por isso interessante e arriscado: sair do campo da história da arte - com seus objetos únicos assinados por artistas inconfundíveis - para entrar no campo da cultura popular do candomblé - que além de ser impossível de ter um autor reconhecido como tal, e portanto longe de uma compreensão estilística que contribua para a refeitura da imagem, possui um processo de construção de símbolos e imagens próprio, distintos da tradição da arte européia -  é definitivamente um teste para as duas questões - autonomia da imagem e a tensão repetição/diferença, que continuam aqui presentes.
Nestas fotografias, que representam individualmente os orixás, Mury é mais uma vez o protagonista. A escolha pelo mundo vegetal como suporte de signos que identificam os orixás revela a mesma dedicação e apuro que a produção dos ambientes dos quadros já demonstrava. A delicadeza da obra é percebida aqui exatamente como seu traço mais autoral, ao se dedicar a um mundo de imagens tanto aberto em suas codificações, como saturado por clichês. A exposição Catador na Floresta de Signos revela uma grande sensibilidade de Mury ao se arriscar em tarefa tão difícil, separando da floresta de signos um estrato preciso para a suas composições. É uma grande experiência, que passa longe da transgressão e ruptura, tanto com o conteúdo tratado como com sua trajetória até aqui, e é, com certeza, muito bem sucedida.

quinta-feira, 7 de maio de 2015

remando contra a maré da anulação da língua (reunião de comentários)

1.
A quem interessar possa:
o uso da crase é normatizado; na dúvida, consulte uma gramática.

2.
Uma das funções básicas da vírgula é orientar a respiração e, com isso, o ritmo da leitura, ajudando na construção do sentido do que é dito / escrito. Então a vírgula é um registro gráfico deste ritmo da fala e, desta maneira, uma orientação para a leitura de um texto escrito.
Primeiro veio a época do abandono da vírgula na língua escrita.
Agora as pessoas deram o passo seguinte: agora se fala como se a vírgula nunca tivesse existido, vírgula e ponto.
Alcançamos mais uma fronteira da incomunicabilidade.

terça-feira, 14 de abril de 2015

o passado, aqui e nunca presente

Hoje morreu meu primo, que havia se despedido de nós décadas atrás.
Meu primo era parte da minha infância que não continuou, porque muita gente de minha infância não continuou.
Mas meu primo, apesar de não ter continuado, de ter sido parte desta parte da infância, estava vivo até hoje.
Ter ido à sua despedida é ter ido de encontro a esta dureza do passado, que nos ilude ao tentar nos convencer que nos acompanha, mas que aproveita os momentos mais duros para demonstrar sua inacessibilidade.
Faz décadas que havia falado a última vez com meu primo.
Hoje falei com sua irmã, minha prima, e a abracei.

quarta-feira, 4 de março de 2015

depois da chuva depois de todo mundo

Hoje finalmente assisti a Depois da Chuva. Difícil fazer algum comentário, depois de tanto que já li sobre o filme. Gostei muito. Marília e Cláudio fizeram um monumento à Salvador dos nossos tempos de adolescentes, seu filme é sobre uma Salvador que guardava um foguete no subúrbio caso não restasse outra coisa a fazer que ir embora. Salvador em meados dos anos 80 guardou em pequenos grupos de amigos, bandas de rock e seus fãs e nos corredores de colégio uma esperança de não estar submetida a uma única, massificante expressão local de cultura popular.
Na cena da sala do bilhar, a música de Luís Caldas serve para índice do que ali se anunciava como futuro asfixiante que, como sabemos hoje, veio. Era uma Salvador que negava ao mesmo tempo a herança hippie de Arembepe, que adentrava os anos 80 vinda da década anterior, e a alegria facilmente celebrada na semana de Momo. Em 1989, o ano da primeira eleição para presidente, já se iam dois anos que Faraó havia estourado.
É impressionante o esforço que os diretores tiveram para filmar externas na cidade: parece ter sido muito difícil conseguir filmar em uma ambiência urbana que guarde aspectos da cidade de há trinta anos, provavelmente tanto quanto se a história fosse situada no século XVIII ou XIX. Os planos com focos distintos é o único recurso possível. Borrada é a memória que se tem da cidade que se identificou com o Camisa de Vênus; o foguete do Subúrbio era uma miragem e portanto nunca alçou vôo.
Que venha o próximo longa!

da minha experiência com trotes

Estudei no Colégio Militar de Salvador, na Pituba, onde tive minha experiência mais duradoura com o trote: ali os alunos da 5a série, lá nos anos 80, permeneciam calouros dos veteranos por no mínimo 1 ano. Isso porque como não se ingressava em outra série no Colégio, os veteranos do Segundo Grau, se quisessem, podiam tratar alguns alunos da 6a série ainda como calouros.
Os trotes que sofri no Colégio Militar e mais tarde presenciei fora da condição de calouro resumiam-se a tapas na parte posterior da cabeça - uma espécie de batismo com os meninos que acabavam de começar a ter o cabelo cortado com máquina 1, exigências de flexões nos corredores, quando os veteranos só começavam a contar quando eles quisessem e assim o calouro fazia 10 ou 15 flexões e ainda estava sendo contado zero, zero, zero...., ou simplesmente a "apropriação" da merenda que havia acabado de ser comprada depois de muito esforço pra conseguir chegar até o balcão da cantina: o veterno tomava da mão do calouro o maravilhoso pão de forma ou sonho, que só D. Regina sabe fazer. Mas nada disso cometido com excessos.
Em um ambiente onde só havia alunos do sexo masculino, aqui e ali os trotes assumiam um caráter físico e amedrontador mais forte: alguns calouros eram postos na marquise do primeiro andar, outros eram cercados por um grupo de 5 ou 6 veteranos, e em geral bullying nunca deixou de existir contra os colegas gays.
Nada disso nos parecia assustador, se comparadas às histórias dos trotes que ouvíamos terem acontecido nas décadas anteriores no Colégio. Desta maneria, a nossa perspectiva era de que o trote era algo em extinção, percorrendo um processo de enfraquecimento e futuro abandono. Entretanto, antes de o trote ser extinto, o que foi extinto  foi o Colégio Militar de Salvador, que fechou as portas pouco depois da minha conclusão do Segundo Grau em 1986.
Ao entrar na Universidade, pouco se falava de trote. Mas não deixamos de "sofrer" um: os estudantes veteranos fingiram ser o professor da primeira aula e deram uma aula complicadíssima de descritiva, apresentando no final uma bibliografia com títulos em língua estrangeira e um calendário exaustivo de provas, além de uma lista imensa de materiais a comprar. Somente no final da aula ficou claro que aquilo era um trote. Aquilo me pareceu uma evolução sem precedentes: nada de agressões físicas, apenas uma brincadeira saudável com a expectativa nervosa de começar um curso universitário, após um vestibular que na época era concorridíssimo, ou seja, o trote baixava assim a bola de quem estava se achando algo especial por ter entrado na ufba, mas de uma maneira muito refinada.
Durante o meu período como estudante, o trote foi diminuindo a ponto de praticamente desaparecer. Entretanto, seguindo uma tendência nacional, a instituição do trote ressurgiu com força nos últimos 15 anos, associada a diversas ações físicas e consumo de bebida alcóolica. Para mim, é muito difícil não perceber este comportamento como um retrocesso, em relação tanto ao trote que foi preparado para a minha turma na universidade como em relação à minha noção muito pessoal de que o trote físico estava associado ao Colégio da maneira como o trote-aula, não físico, estava associado ao ambiente da universidade.
Continuo com a impressão de que quantos mais ritos de passagem são necessários em um ambiente cultural, mais dúvida deve haver se realmente os envolvidos no tal rito tem a maturidade que aquele rito deveria simplesmente simbolizar. Ele pelo visto não está dando conta de sua função.