quinta-feira, 28 de maio de 2015

Reflexões sobre a demolição dos casarões na ladeira da montanha ou Observando os urubus se refastelando na carniça

Esta é uma reunião dos postings que escrevi nas redes sociais sobre a reação "apaixonada" contra as recentes demolições nas Ladeiras do Centro Histórico de Salvador:

1.A ladeira da montanha é uma aula sobre os processos de longa duração.
nao quer dizer quase nada sobre chuvas, encostas e tratores.

2. Está chocado/a com o destino trágico da ladeira da montanha mas:

a. "achou massa" a demolição da Fonte Nova para que Salvador fosse sede da Copa do Mundo ‪#‎toudeolhoemvoce
b. nem percebeu que nao existe mais nenhuma das árvores centenárias no fundo da Escola de Belas Artes ‪#‎toudeolhoemvoce‬
c. nunca foi à casa de Ruy Barbosa (ali no centro, sabe, tem uma rua com o mesmo nome; mas talvez voce nem saiba quem foi Ruy Barbosa, né? conta aí, vai)‪ #‎toudeolhoemvoce‬
d. nunca sentou na praça municipal para tomar um milk shake na Cubana (nem sabe o que é a Cubana, confesse aí, vai) #‎toudeolhoemvoce‬
e. nunca desceu a pé o Taboão ‪#‎toudeolhoemvoce‬
f. nem sabe onde fica a estrada da Rainha, aliás, onde ficava, pois a avenida que liga a rótula do abacaxi ao porto a destruiu, e como você nem sabe onde a estrada da Rainha ficava, você nem pôde se indignar ‪#‎toudeolhoemvoce‬
g. não vê nenhum problema no desenho da monstruosa linha de metrô na Avenida Bonocô ‪#‎toudeolhoemvoce‬
h. não assinou a petição pública contra o shopping sobre a Estacao da Lapa‪#‎toudeolhoemvoce‬
i. acha linda a praça da cruz caída (que foi posta no lugar de uma obra de Lina Bo Bardi).‪#‎toudeolhoemvoce‬

3. Me diga aí, você já subiu a pé alguma vez na sua vida a Ladeira da Montanha? Ou já desceu a pé, que é mais fácil? Entendeu porque não é de agora que o que restava dos casarões está destinado à destruição?
‪#‎nãovaleagoratirarondadedefensordopatrimonio‬

4. A ladeira da montanha é como o Charles Hebdo: em nome de um ataque político (ideologia estúpida) as pessoas aparecem defendendo e atacando coisas muito estranhas a elas mesmas.

5. de novo eu li "projeto de gentrificacao", pelo visto pegou; eu leio isso e é como ouvir alguém falar menas. eu acho que vou dar um toque pros donos da sorveteria da ribeira. como eles cresceram tanto, comprando o terreno do fundo para estacionamento, logo logo eles serao demonizados como agentes da gentrificacao. ‪#‎estupideznaotemlimites‬ ‪#‎aindamaisnabahia‬

6. Os urubus continuam disputando a carniça. E olha que já antes do ataque restava pouca coisa além de osso.

7. a ladeira da montanha hoje nao foi chorar sobre o leite derramado, foi urubu na carniça mesmo.
e uns urubus danados de letradinhos.

8. A ladeira da montanha está abandonada há décadas e enquanto passarem ali as inúmeras linhas de ônibus que ali aniquilam qualquer noção de qualidade ambiental, nada pode ser feito para um uso decente dos edifícios. As casas podem até ter sido derrubadas ontem, mas a decisão deste destino foi tomada há décadas e este tempo todo o gran finale foi continuamente preparado. A chuva deste maio foi tão somente uma gota d'água.

sexta-feira, 8 de maio de 2015

O catador na floresta de signos: Alexandre Mury na Galeria Roberto Alban


Inaugurada ontem à noite na Galeria Roberto Alban, em Ondina, a exposição O catador na floresta de signos, que mostra fotografias elaboradas pelo artista Alexandre Mury tendo os orixás como tema central, reúne um conjunto de imagens cujo rigor estético permite uma continuidade no enfrentamento de questões que perpassam a sua obra, como a autonomia da imagem e a tensão entre repetição e diferença.
A obra de Mury faz vibrar a inquietação muito contemporânea do desequilíbrio em favor da mensagem e em detrimento do meio: fruto da cultura compartilhável, da intercambialidade de formatos, o conteúdo parecia retomar fôlego depois de décadas de primazia da forma.
Na época dos passeios virtuais pelos grandes museus do mundo, as suas reproduções fotográficas de exemplares famosos da história da arte, tematizam a questão do conteúdo de um outro ângulo: e quando a imagem é em si o conteúdo cultural que possuímos - e a estratégia de reconhecimento de repertório por parte do público é mecanismo essencial para o seu trabalho - como paradoxalmente amplificar a sua validade cultural, sem cair no fetiche da experiência da verdade material
da obra única, que por si só é "apenas suporte" da imagem?
Aqui entra o espírito divertido e leve no tratamento da diferença na repetição: Mury reconstrói em estúdio - e por isso suas fotografias são elaboradas - as cenas retratadas em famosos quadros da história da arte, assumindo o protagonismo das figuras neles retratadas, para fazer valer a diferença na repetição, sublinhando e amplificando a autonomia da imagem, daquilo que ironicamente acreditamos como autônomo a cada uma das milhares de vezes que a reproduzimos.
O passo que Alexandre Mury dá nesta exposição é por isso interessante e arriscado: sair do campo da história da arte - com seus objetos únicos assinados por artistas inconfundíveis - para entrar no campo da cultura popular do candomblé - que além de ser impossível de ter um autor reconhecido como tal, e portanto longe de uma compreensão estilística que contribua para a refeitura da imagem, possui um processo de construção de símbolos e imagens próprio, distintos da tradição da arte européia -  é definitivamente um teste para as duas questões - autonomia da imagem e a tensão repetição/diferença, que continuam aqui presentes.
Nestas fotografias, que representam individualmente os orixás, Mury é mais uma vez o protagonista. A escolha pelo mundo vegetal como suporte de signos que identificam os orixás revela a mesma dedicação e apuro que a produção dos ambientes dos quadros já demonstrava. A delicadeza da obra é percebida aqui exatamente como seu traço mais autoral, ao se dedicar a um mundo de imagens tanto aberto em suas codificações, como saturado por clichês. A exposição Catador na Floresta de Signos revela uma grande sensibilidade de Mury ao se arriscar em tarefa tão difícil, separando da floresta de signos um estrato preciso para a suas composições. É uma grande experiência, que passa longe da transgressão e ruptura, tanto com o conteúdo tratado como com sua trajetória até aqui, e é, com certeza, muito bem sucedida.

quinta-feira, 7 de maio de 2015

remando contra a maré da anulação da língua (reunião de comentários)

1.
A quem interessar possa:
o uso da crase é normatizado; na dúvida, consulte uma gramática.

2.
Uma das funções básicas da vírgula é orientar a respiração e, com isso, o ritmo da leitura, ajudando na construção do sentido do que é dito / escrito. Então a vírgula é um registro gráfico deste ritmo da fala e, desta maneira, uma orientação para a leitura de um texto escrito.
Primeiro veio a época do abandono da vírgula na língua escrita.
Agora as pessoas deram o passo seguinte: agora se fala como se a vírgula nunca tivesse existido, vírgula e ponto.
Alcançamos mais uma fronteira da incomunicabilidade.