sábado, 31 de outubro de 2015
Tropykaos, no XI Panorama Internacional Coisa de Cinema
Em um dos textos fundamentais para a compreensão do pós-modernismo em arquitetura nas Américas, Mary McLeod cita uma discussão sobre a definição do caráter regional da Flórida, na qual um dos argumentos apresentados contra uma elaboração por demais discursiva de um caráter regional num ambiente de pouca densidade histórica apresentava o aparelho de ar condicionado como a identidade regional da Flórida por excelência.
Em Tropykaos, que teve sua estréia para o público ontem, dentro da programação do XI Panorama Coisa de Cinema, o aparelho de ar condicionado é muito mais que um elemento da identidade local, ele assume a função de prótese física essencial para a sobrevivência em Salvador.
Guima, o personagem principal do filme, afirma em tom desesperado e lúcido: "eu não estou preparado geneticamente para viver nesta cidade", conquistando assim a adesão imediata do público a sua causa. Eu, que já possui um aparelho de ar condicionado do mesmo modelo que o visto no filme e que trato a canção Everyday is like Sunday de Morrissey como o hino secreto de Salvador, considero-me mais que representado na tela.
Como uma espécie de anti-ode a Salvador, o primeiro longa de Daniel Lisboa utiliza do aparelho de ar condicionado como metáfora invertida para falar sobre a dificuldade de se viver neste grande artefato de caráter urbano. O grande destaque fica por conta da cena onde Guima carrega ao ombro a sua prótese resfriante - e o personagem literalmente é esquentado pela "ultra violência solar" - subindo a Praça Castro Alves, recriando a imagem clássica de Atlas, cuja esfera do mundo e todo o seu peso aparecem ali, em Salvador, substituídos por um volume com arestas e precisando de conserto.
Mas enquanto o filme abre com declarações contundentes e fortes imagens (destaque para a sequência no Porto da Barra), a homenagem a clássicos do cinema baiano perde seu vigor com o desenrolar do filme, deixando o espectador um tanto desapontado com certa linearidade do roteiro. No final, mesmo uma constatação dos desígnios inalcançados das promessas de modernização da Bahia, filmada no lugar onde aconteceu em 1912 seu ato original, o bombardeio do centro, corre o risco de sequer ser percebida como provocação.
Se não há dúvidas sobre a opção estética do filme, guarda-se este primeiro longa do diretor como uma aposta em futuros com desenvolvimento de enredo mais sutil e multidimensional. E sempre em salas climatizadas!
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Aqui Deste Lugar, no XI Panorama Internacional Coisa de Cinema
O segundo filme de Sérgio Machado no Panorama de 2015 é o documentário Aqui Deste Lugar, filmado em 2013 em parceria com Fernando Coimbra, que mostra três famílias brasileiras beneficiárias do programa Bolsa Família. O mote do filme é investigar o cotidiano de famílias que recebem a complementação de renda do Estado a partir de um lugar muito específico: o interior da casa. Se o foco do programa é a garantia da segurança alimentar, a tomada de decisão é mais que acertada.
Como o diretor explicou no debate após a sessão de ontem no Panorama, a escolha das três famílias foi baseada em um estudo estatístico detalhado que buscou encontrar famílias típicas inseridas no programa. A diversidade das situações a individualizam: as famílias moram em regiões distintas do país (Sul, Sudeste e Nordeste) e em situações urbanas também muito distintas (metrópole, cidade média e pequena cidade).
Sérgio e Fernando registram que, além do direto incremento da renda das famílias (e o público é quase didaticamente apresentado a panelas e mamadeiras cheias), o Estado brasileiro faz parte do seu cotidiano em outras duas situações: através das escolas e das assistentes sociais ligadas ao programa, que interrogam as famílias de maneira mais ou menos burocrática, com a finalidade de controlar os critérios para a continudade do benefício.
O filme, que segue uma montagem clássica ao intercalar as histórias das três famílias assegurando um bom ritmo à montagem, guarda sua grande qualidade ao se esforçar para se manter num campo neutro ao tratar de um tema tão polarizante no país: o registro é feito sem um narrador ou entrevistador, com a câmera simplesmente inserida na casa, o que divertidamente acaba por estimular aqui e ali um certo comportamento big brother de um ou outro retratado.
E é exatamente esta neutralidade que permite que o filme, ao entrar na casa das pessoas, migre da sua ideia inicial para, em primeiro lugar, constatar o papel decisivo das mulheres no desenho e manutenção das estruturas familiares mostradas no filme (e desde a primeira cena do filme este protagonismo é evidente); e, em segundo lugar, para nos lançar mais uma vez a questão que somente o mais convicto dos materialistas pode renegar, sobre a natureza do que nos é apresentado como problema: estão nas condições materais o cerne dos problemas apenas tangenciados por um programa como o bolsa família ou são todos os defeitos das formas e maneiras como os arranjos familiares são construídos e mantidos que levam as pessoas a viverem em tais condições? A última frase do filme levanta exatamente esta questão.
A mesma intenção de neutralidade, entretanto, com que se entrou na casa talvez não tenha permitido lançar um olhar, ainda que apenas furtivo, sobre o vizinho. O filme, ao atomizar as famílias, não toca na linha de renda estabelecida pelo programa, e assim fica no ar a inquietação por saber o que acontece em termos de dinâmica social para quem está imediatamente do lado de fora desta linha. Aqui Deste Lugar, um filme que merece ser visto por muita gente, deixa então o convite para o lugar da casa ser envolvido pelo lugar da rua e do bairro.
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sergio machado
quinta-feira, 29 de outubro de 2015
Tudo que aprendemos juntos, na abertura do XI Panorama Coisa de Cinema
A abertura do XI Panorama Coisa de Cinema, ontem à noite no Espaço Itaú - Cine Glauber Rocha, foi um sucesso de público, com salas lotadas por uma platéia ávida pela programação muito interessante que ocupará as salas de cinema na Praça Castro Alves, na sala Walter da Silveira e em Cachoeira até o próximo dia 4 de novembro. O Festival é sem dúvida um dos pontos altos da programação cultural na Bahia e a seleção de filmes apresenta títulos já bastante aguardados em um painel diversificado que serve de principal mostra da produção de cinema local. Ontem na abertura, além de uma apresentação de música antes da exibição do filme Tudo que Aprendemos Juntos, o clima de confraternização se estendeu após a exibição do filme em uma festa no próprio espaço do cinema.
Tudo que Aprendemos Juntos é o mais novo filme do diretor baiano Sérgio Machado e conta com Lázaro Ramos no papel principal encarnando um músico erudito que, no intervalo de tempo de pouco mais de um ano, entre duas audições para concorrer a uma vaga na OSESP, precisa aceitar, para poder pagar as contas, o trabalho de professor de música de adolescentes que vivem em uma favela e ensaiam sem nenhuma orientação valiosa na quadra de esportes do colégio.
O filme tem produção muito boa, a edição é de destaque, assim como a atuação do grupo de atores que fazem os papeis dos adolescentes e de Sandra Corleoni, principal coadjuvante no elenco, em contraposição a Lázaro Ramos, que apenas mantém o padrão de performance já conhecido. Se fosse possível escolher um adjetivo apenas para o filme, seria redondo: não somente há um determinado nível de profissionalismo em todos os aspectos técnicos do filme, como também a narrativa prefere se acomodar à opinião pública mais ou menos vigente na classe média universitária sobre o ambiente social em que a história é contada: nós somos convidados a descobrir humanidade no chefe do tráfico que domina a favela e a única representação completamente má é conferida à polícia.
Talvez seja este o problema do filme: diferente da tradição da ópera, onde as encenações das histórias por demais conhecidas do público desafiam seus conteúdos ao deslocá-los para ambiências contemporâneas ou muito distintas das originais, em Tudo Que Aprendemos Juntos ao clássico enredo professor-enfrenta-turma-problemática é acrescentada inquietação apenas de maneira muito tímida, escapando mesmo pela tangente.
E isso que o filme tinha a chance para explorar de maneira incômoda a ambígua e questionável relação entre as classes médias com culpa social e os moradores pobres de bairros desprovidos de infra-estrutura no país. Mas o filme prefere arredondar as arestas, amenizando os dilemas que esta reflexão poderia trazer ao seu personagem principal, apresentando o desfecho como uma win-win situação. Tudo indica que o filme fará uma boa bilheteria no Brasil.
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terça-feira, 20 de outubro de 2015
da bahia
a decadência latente e alerta, pronta para se espraiar sobre tudo, foi a maneira que a bahia encontrou de ter a chance de continuar a ser bahia.
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