quinta-feira, 5 de novembro de 2015

Travessia, no XI Panorama Internacional Coisa de Cinema


Travessia, o filme da sessão de encerramento do XI Panorama Internacional Coisa de Cinema, conta a história de desencontro entre pai e filho, personagens interpretados pelos atores Chico Diaz e Caio Castro. Estamos em Salvador, sabemos que a mãe/esposa está morta e que no meio das diferenças entre os dois personagens há uma disputa que envolve o inventário de família.
Com uso um tanto excessivo da combinação de tomadas com baixa profundidade de campo e close-ups, o filme aposta na construção psicológica dos personagens, que entretanto não adquire o relevo suficiente para que compreendamos as razões para tamanho desencontro familiar ou venha a estabelecer elos significativos com os acontecimentos da trama.
A inserção da trilha sonora, um tanto cansativa, e o ritmo narrativo, que poderia ser mais vigoroso, tampouco contribuem para o filme deslanchar ou envolver o público. Com algumas tomadas de Salvador muito bonitas, o filme não encontra firmeza nas opções estéticas e acaba sendo encerrado com um formalismo previsível.

quarta-feira, 4 de novembro de 2015

Boi Neon, no XI Panorama Internacional Coisa de Cinema


A expectativa gerada a partir da conquista pelo filme Boi Neon do prêmio da mostra Horizontes no Festival de Veneza, na Itália, é plenamente satisfeita: o filme dirigido por Gabriel Mascaro deve ser não somente o melhor filme lançado este ano no Brasil, senão também um dos melhores dos últimos anos.
O filme mantém-se em alto nível em todos os seus elementos: a impecável atuação do conjunto de atores, o excelente roteiro, a fotografia que acompanha a narrativa sem tentar assumir qualquer protagonismo, a trilha sonora, a direção de arte e, acima de tudo, a cuidadosa construção do desenrolar da trama e o seu encerramento.
Boi Neon explora muito bem as tensões entre os personagens decorrentes da própria ambivalência de sua atividade de trabalho: entre a manutenção do gado e a vida na estrada como artistas circenses, a história vive de uma série de articulações, umas possíveis, outras imaginárias, outras concretas, que a moldura oferecida pela confluência entre o ambiente rural e o mundo do espetáculo oferece: é daí, desta ambiguidade, que surge a riqueza não somente do personagem central, interpretado por Juliano Cazarré, o vaqueiro que gosta de corte e costura, como de todo o conjunto formado pelas figuras coadjuvantes.
Em comum com Big Jato, o outro filme exibido nesta edição do Panorama Internacional Coisa de Cinema cuja história se desenrola no nordeste brasileiro fora das metrópoles, o filme apresenta o cotidiano de empreendedores autônomos, à margem do processo mais recente de industrialização e modernização, que aparece em distintas intensidades como um pano de fundo de contraposição das histórias. Mas apenas isso os dois filmes têm em comum. No filme dirigido por Gabriel Mascaro a economia dos meios e a precisão da inflexão dramática no meio da trama são tão bem calibradas que o diretor constrói sutilmente a crescente ansiedade do público em direção ao desfecho do Boi Neon.
E se há algo contracultural neste filme em relação aos temas amplamente debatidos no país hoje, o Boi Neon pode também ser visto como uma espécie de manifesto anti-queer. E aí, é um filme deliciosamente irônico, algo mais uma vez apenas possível por saber explorar magistral e sutilmente as ambivalências e ambiguidades. Imperdível.

Garoto, no XI Panorama Internacional de Cinema


Ontem minha programação no Panorama foi contracultural (no sentido mais aberto da expressão, distante do seus significado ligado mais precisamente aos anos 60): tanto Garoto como Boi Neon são filmes que desafiam valores, opiniões e agitações muito em voga no país atualmente. E por isso já possuem um valor à parte.
Garoto, o filme dirigido por Júlio Bressane, segue a tradição do diretor, de obras muito pessoais. Fotografia com ênfase em diagonais planas e perspectivas do eixo vertical dramatizadas marcam a primeira parte do filme, enquanto a segunda, em contraste visual e de ambiência (do bosque à caatinga), é marcada por perspectivas aéreas de paisagens.
A distinção entre os dois momentos no filme - a que corresponde à mudança de protagonismo entre os dois personagens, já que a garota cede ao garoto esta posição depois desta transição - é clara e precisa, afinal o filme é uma versão cinematográfica da antiga história de Eva e Adão. O tempo é longo, assim como é de épocas imemoriais o bolero.
O que tem de contracultura no filme? À passagem da dupla de Eva e Adão para Adão e Eva corresponde uma visão igualmente feminista e anti-feminista desta versão ficcional da origem da espécie humana no planeta. No país onde a palavra deconstrução é tão incompreendida como abusada, a elaborada extensão no tempo desta ficção, acompanhada de um excelente desenho de sons, poderia até ser didática (sem excessos de formalismos). Mas desconfio que poucos assistirão a este Garoto.

segunda-feira, 2 de novembro de 2015

Big Jato, no XI Panorama Internacional Coisa de Cinema


Big Jato é um bom filme de entretenimento, o que é sublinhado várias vezes por um dos personagens, e um representante clássico do que se convencionou chamar "cinema de Pernambuco", com seus sotaques, ambiência em um interior capaz de guardar os segredos das histórias universais e boa fotografia. O público se diverte com o filme e aplaudiu com vontade no final da sessão de ontem no XI Panorama Internacional Coisa de Cinema.
A história de um menino que acompanha seu pai em um caminhão limpa-fossa combina o processo de amadurecimento de um adolescente em vias de se tornar um adulto com o motivo do anjo bom e do anjo mau tentando interferir nas decisões que marcam este processo. Família, conexão com o vasto mundo, sexualidade, trabalho, poesia e amor são os desafios colocados no percurso, que tem no ir e vir do caminhão limpa-fossa uma interessante metáfora dupla dos ciclos aparentemente imutáveis, mas constantemente "ameaçados" pela sedução dos processos de modernização.
Calcado fortemente na excelente atuação dupla de Matheus Nachtergaele, o filme dirigido por Cláudio Assis peca entretanto por alguns excessos (há personagens demais, a exemplo do Príncipe ou da irmã na família, cujas funcionalidades na trama não ficam claras, um exagero um tanto artificial na literariedade de algumas falas e na repetição de algumas tiradas engraçadas) e por uma ou outra cena onde o conjunto dos atores não parece dar conta da dramaticidade requerida. O grande destaque vai para o difícil equilíbrio conseguido entre três personagens centrais dentro de uma história que a princípio teria um protagonista indiscutível, o que gera uma interessante tensão.
Há algo mais, talvez um tanto difuso, que fica após ter visto Big Jato: será o momento de ser avaliado um determinado protagonismo que a fotografia - estonteante, arrebatadora - assumiu no cinema no país?

domingo, 1 de novembro de 2015

A Loucura Entre Nós, no XI Panorama Coisa de Cinema


A Loucura Entre Nós, filme apresentado ontem em mais de uma sala no XI Panorama Coisa de Cinema, é um documentário que mostra aspectos do tratamento dado a distúrbios mentais, acompanhando a vida de duas mulheres durante mais de um ano. As singularidades dos personagens estão garantidas pelas diferenças de idade, classe social, estrutura familiar e formação. As duas protagonistas e os personagens secundários nos ensinam que uma pessoa em tratamento hoje pode estar enquadrada em três situações distintas: internada no hospital, participando de terapias ocupacionais com uma grande carga horária semanal e levando uma vida cotidiana essencialmente fora destes dois espaços apoiada no uso regular de medicamentos.
O filme deixa claro que estas situações correspondem a espaços de vida distintos, com fronteiras muito claras, o que fica evidente na satisfação que gera a transferência da unidade de terapia ocupacional para um endereço distinto do hospital.
O espaço como elemento definidor destas estratificações da loucura aparece marcado desde o começo do filme dirigido por Fernanda Fontes Vareille; na cena inicial, a porta do Hospital Juliano Moreira, em Salvador, é aberta pelo funcionário e, embora seja uma porta de correr de vidro e madeira em uma fachada moderna, o arranque do filme sugere pela solenidade do enquadramento que esta é uma porta que não se abre tão facilmente. Efetivamente, a câmera irá permanecer a maior parte do tempo numa espécie de vestíbulo, a partir do qual os internos da instituição são filmados atrás de uma grade que só é aberta com muita precaução e muito raramente.
Se relacionado ao título do filme, a loucura entre nós, o resultado da câmera parada ali no vestíbulo e da sutil demonstração de oposição no decorrer do acompanhamento das duas personagens através da narrativa suave e alternada, ainda que ofereça uma obra de ritmo, não consegue enfrentar a loucura que vemos e escutamos ali naquele vestíbulo gradeado e que definitivamente não está entre nós. A melhor prova disso é que o travelling durante a tão aguardada visita ao interior do módulo 2 é o melhor momento cinematográfico do filme, quando finalmente a fronteira mais importante é rompida e o cinema se coloca no meio da loucura, articulando a inversão do seu mote. Suave e contido, o filme, mesmo apresentando personagens em transição entre distintas situações, ao evitar ultrapassar mais consistentemente as fronteiras, acaba por não explorar todo o potencial do que seria estar entre. Dito de outra maneira, se a loucura é o que está entre nós, aquilo que permanece rigidamente separado ainda pode ser assim chamado?